sábado, 23 de julho de 2011

De 26 de Abril a 31 de Maio de 2011

Depois de arrumar todos os cacarecos de volta nos armários do apartamento do tio Cláudio, finalmente poderíamos fazer uma refeição bem ao gosto de Ana Luiza: comida feita no fogão, como ela dizia.

Mas apesar de todos os esforços, Ana Luiza não conseguia recuperar os quilos perdidos. Ela ainda comia muito pouco e submetendo-se a radioterapia ainda tinha náuseas e uma certa falta de apetite, ambas causadas pelos efeitos do tratamento. Mesmo com toda a criatividade da vovó, ela ainda se alimentava muito pouco.

A radioterapia do crânio seguia bem. Ana Luiza fez amizade com todos os pacientes que também faziam tratamento no mesmo horário. Diariamente, ela conversava, abraçava e cumprimentava os novos amigos. Todos, muito mais velhos que ela. Era muito engraçado ver como ela se relacionava bem com os amigos, todos acima de 40 anos. Gostava de mostrar os brinquedos, os joguinhos, fazia cartinhas e desenhos. Ana Luiza nutria um carinho todo especial pela Denise e pelo Sr. Humberto, dois seres humanos incríveis que estiveram conosco nessa fase do tratamento, cada um segurando o seu fardo, mas sempre com um baita sorriso no rosto.

Todos os dias a rotina era a mesma. Diariamente, no início da tarde, a gente pegava um táxi (e ela também ficou amiga de todos os motoristas do ponto de táxi próximo ao apartamento, em especial o Sr. Walter, que se tornou um grande amigo da pequena), entrava no hospital, depositava os cupons fiscais na urna localizada na recepção, cumprimentava as recepcionistas e seguranças do bloco B, subia até o 5º andar, fazia suas provas e atividades da escola e, por fim, descia até o 1º subsolo, para aguardar o seu horário de tratamento.

Assim que ela chegava lá e pegava uma senha, o salão se iluminava. Ela arrancava sorrisos de todos, sempre cumprimentando todo mundo, abraçando os amigos e indo direito ao balcão de atendimento, onde ajudava os atendentes, que também já eram seus amigos.

Todos tinham muito carinho por ela. E era recíproco. Ana Luiza adorava conversar com cada um deles. Muitos confessavam que a pequena era a alegria do setor de radioterapia. Que com seu jeito cativante e sereno, tornava tudo muito mais fácil. Vários pacientes que precisavam irradiar a região de cabeça e pescoço e necessitavam utilizar a mesma máscara rígida que Ana Luiza utilizava, não tinham a mesma desenvoltura da pequena.

Ana Luiza nunca precisou de sedação. Mas vários adultos precisavam e quase todas as crianças da idade dela também. E ficar imóvel, usando uma máscara desconfortável, era realmente assustador e em alguns casos, impraticável. Mas Ana Luiza saía do tratamento e ainda tranquilizava os pacientes que estavam iniciando o tratamento: “Pode ficar tranquila, Dona Flor. Não dói nada, só o rosto que fica um pouco amassado.”

Na Escola da Pediatria, onde ela fazia as provas e estudava as disciplinas do 3º ano do ensino fundamental, não dava pra ter certeza de quem se divertia mais, se era Ana Luiza, ou se eram as professoras.

Apesar de ter ficado sem estudar desde setembro de 2010, a pequena não tinha nenhuma dificuldade com os ditongos, hiatos, paroxítonas, que a Prof. Rejane a ajudava a lembrar. As cores primárias e secundárias, graças a Prof. Eliane também foram facilmente estudadas, quer dizer, “brincadas”, afinal tudo com a Prof. Eliane virava brincadeira e ela adorava. A matemática com a tia Iara também era tranquila e ela tirava os números de letra, por assim dizer. As provas de história e geografia com a Prof. Camila também eram fáceis e, eventualmente, ainda sobrava um tempinho pra jogar algum jogo, ou fazer algum desenho. E a Prof. Fabiana sempre presente em todos os momentos, sempre brincando e curtindo a presença da Ana Luiza na escolinha.

Apesar de estar sem estudar há 8 meses, ela não teve dificuldade com absolutamente nada. As professoras arriscavam dizer que ela voltaria pra escola no segundo semestre e ainda seria a primeira da turma. Eu ria. Ana Luiza dava de ombros. Desde muito pequena ela se destacava na sala de aula, mas nem ela, nem eu achávamos que fosse algo extraordinário. Ela continuava sendo a criança linda e meiga de sempre. Ingênua, sincera, comunicativa e carinhosa com os amigos. Aprendeu a ler as primeiras palavras aos 4 anos. Aos 5 já escrevia com letra cursiva e contava até 100. Mas pra ela aquilo era normal. Ela nunca se achou especial e eu, também achava que eu não deveria tratá-la como diferente. Ela sempre me pareceu apenas uma criança inteligente. E me preocupava essa “aceleração” do aprendizado. Mesmo tão capaz intelectualmente, ela ainda era uma criança muito nova e agia exatamente como uma criança de 5 anos. Nunca foi estimulada a ser precoce. As professoras me garantiam que estavam indo na velocidade dela. E eu aceitava assim.

Os dias corriam tranquilos. Ana Luiza sempre muito animada, contagiando todo mundo com sua alegria e simpatia. A cada dia, a cada sessão de radioterapia concluída, nos aproximávamos do momento tão esperado: o fim do tratamento e o retorno para Manaus. Ainda havia uma pequena jornada, pois ainda faltava a radioterapia do tórax e da coluna dorsal, mas já havíamos estado mais longe. Estar próximo do fim, gerava uma ansiedade boa e uma certa insegurança de como seria nossa nova vida. Mas sem dúvidas, o maior sentimento, era a alegria nos corações de todos da família.

Todos os dias, na hora de ir embora do hospital, ela nunca caminhava a meu lado, sempre andava muito a frente, sempre cumprimentando os funcionários do hospital que iam passando. Cumprimentava as zeladoras, os funcionários do Banco de Sangue, as enfermeiras, os médicos e as moças que levavam as refeições nos quartos. Se encontrasse um dos médicos, parava pra conversar. Mas sempre que chegava até o local onde pegávamos o táxi para voltar pra casa, ela sempre se escondia no balcão das recepcionistas. E os seguranças, sempre davam risadas, entrando na brincadeira da pequena.

Ela era muito querida, eu não tinha dúvidas. E isso sempre me emocionava. Uma criaturinha de 7 anos, que era capaz de conquistar e cativar tanta gente grande, era motivo de muito orgulho pra mim. Mesmo enfrentando seus próprios problemas (nem poucos, nem simples), ela não se fechou em seu mundo, como a grande maioria de nós, adultos fazemos.

A realidade é que muitos adultos, ao enfrentarem um problema, seja ele grave ou não, já tem motivos e desculpas suficientes para simplesmente deixar de dar bom dia. O porteiro fica invisível, seus colegas de trabalho também. Até seus familiares tem que encarar sua auto-piedade. Nada é maior e mais importante do que nossos próprios problemas. Dar um bom dia sincero, quando o nosso próprio dia é um festival de problemas, é para poucos. Fico feliz e muito orgulhosa de saber que minha filha está nesse pequeno e seleto grupo.

Ao final da radioterapia de crânio, faltando uma semana pra o início da radioterapia do tórax e das vértebras e, finalmente o término do tratamento com a remissão completa da doença, tivemos uma consulta de rotina com a médica responsável pelo tratamento de Ana Luiza, que além de ser a chefe do departamento de oncologia pediátrica, havia se tornado uma pessoa muito especial para nossa família, pois mesmo com todo seu pragmatismo, mesmo com uma “casca” mais séria, ela sabia usar as palavras certas e com muita honestidade, nos dava segurança para seguir firme no tratamento.

Os exames de sangue de Ana Luiza não haviam ficado prontos a tempo para a consulta, mas clinicamente ela estava bem e a médica apenas conversou conosco. Uma conversa franca, mas dolorosa. Como eu costumava dizer, essas conversas pareciam aqueles momentos em que você está se deliciando com um bolo de chocolate e vem alguém e joga areia em cima.

Mas a verdade sempre será a verdade e, por mais dolorosa que ela pareça, é importante para nos sustentar. Ninguém sobrevive as custas de uma mentira, por mais que ela seja doce. A honestidade, além de uma virtude, é uma necessidade básica para encararmos esta doença tão nefasta. Na verdade, se a gente parar pra pensar, está máxima serve pra tudo nesta vida.

A médica esclareceu que Ana Luiza estava bem, que ela estava muito satisfeita com a situação clínica dela, mas que uma recidiva do tumor, colocaria tudo a perder, afinal a pequena já tinha utilizado todo o arsenal disponível para combater esta doença, incluindo quimioterapia de altas doses com transplante autólogo de células tronco, modalidade que ainda não havia sido muito bem relata na literatura como sendo eficaz em casos de rabdomiossarcoma metastático. Ela já havia usado diversas drogas e, caso o tumor voltasse a crescer em alguma parte do corpo, Ana Luiza não teria mais chances de cura.

Ouvir esta verdade foi bastante doloroso. Quando falamos de câncer, a palavra cura, é algo ainda muito distante. Mesmo em pessoas que estão livres da doença há anos, o temor a cada exame de rotina, é como um pesadelo que não nos abandona nunca. Usa-se, apropriadamente, o termo “doença sob controle”, como bem esclareceu um dos maravilhosos médicos da Ana Luiza. E apesar de ter a doença sob controle hoje, o amanhã sempre permanecerá desconhecido. Na verdade esse é o mistério da vida. O amanhã sempre será desconhecido, tendo câncer ou não.

Entretanto, estar com a doença sob controle já é algo a ser comemorado. Um tratamento que foi brilhante desde o início, só pode ser comemorado, apesar das verdades incontestes da médica. A série de milagres que vivenciei, me permitem comemorar. O que fica em nossos corações é o desejo de que a doença permaneça sob controle por toda a vida de Ana Luiza. E que este pesadelo, não passe disso: um pesadelo, daqueles que você acorda e respira aliviada tendo a certeza de que tudo continua bem.

Terminada a consulta, fomos almoçar e logo em seguida nos dirigimos para o setor de radioterapia e, quando os exames de sangue de Ana Luiza ficaram prontos, uma das médicas me chamou até o consultório novamente.

O sangue de Ana Luiza estava muito ruim. Aquilo me deu um frio na espinha. Inesperadamente, os leucócitos e neutrófilos estavam muito baixos e, contrariando a minha vontade (e pela expressão da médica, a dela também), aquilo poderia ser uma recidiva do câncer, na medula óssea.

Era sexta-feira. Respirei fundo e, depois de ter ouvido tudo aquilo sobre uma possível recidiva, só me restava ter calma. Chorar ou me desesperar, seria completamente inútil, mas quem disse que a gente controla nosso coração. A sensação que eu tinha, era que ele tinha parado na minha boca. A médica me orientou a repetir o exame na segunda-feira. Caso estivesse do mesmo jeito ou pior, ela seria submetida a uma biópsia de medula óssea.

São nestas horas que a nossa fé é provada. É tolice tentar demonstrar a nossa fé quando tudo está dando certo. Nas dificuldades é que devemos vislumbrar o nosso amor a Deus e o amor dEle conosco.

Comentei com meus familiares, tentando transmitir uma tranquilidade que não existia em meu coração. Mas deu certo. Ninguém estava tão preocupado, nem a própria Ana Luiza, que apenas disse: “Ai, mãe. Isso não é nada demais! Calma, tá?”

Na segunda-feira, acordei do pesadelo. Exames normais. Ufa! Pra ser mãe de Ana Luiza, tem que ter coração forte, pensei eu. Foi apenas um susto, disse a médica com um sorriso aliviado, mas ainda sem compreender o motivo da queda abrupta da imunidade. Talvez jamais saibamos o que causou essa alteração inesperada. A lição que ficou pra mim, é que esta doença tem que ser respeitada. Cura? Só daqui há 5 anos usarei esta palavra. E olhe lá.

Durante este período mais tranquilo (e menos doloroso) do tratamento, afinal Ana Luiza não teve nenhuma intercorrência grave devido a radioterapia, tivemos momentos de muita tranquilidade. Passeamos, nos divertimos em casa e estávamos, literalmente, curtindo o momento. O cabelo, os cílios e sobrancelhas voltando a crescer, traziam de volta o rostinho de criança saudável que ela sempre foi. Um dia, a pequena se olhou no espelho e, modesta, disse: “É... Até que eu estou me achando bonita de novo.” Rimos, as duas, em frente ao espelho do banheiro. Beijei demais aqueles parcos cabelinhos lavados e cheirosos de xampu!

Mas o mundo não para. Hoje estamos encarando o fim do tratamento, enquanto outros estão no meio dos processos dolorosos que invariavelmente levam a cura e, outros tantos, estão apenas iniciando sua entrada neste “mundo paralelo” que é o diagnóstico de câncer. Muitos estão com a doença sob controle há anos, mas continuam tendo seus próprios pesadelos, ao se submeterem a exames de controle, por medo de uma recidiva. Outros choram, pela falta de chances de cura, ao serem incluídos nos Cuidados Paliativos. Outros estão diantes de caixões, perdendo seus entes queridos para esta doença nefasta.

Enquanto a gente curtia momentos de tranquilidade, era impossível não pensar em outras pessoas. E nestes momentos de alegria, qualquer um de nós passa a ter o direito de apenas “curtir nossa felicidade”, não é mesmo? O pensamento da grande maioria das pessoas é: “Eu já sofri bastante. Tenho o direito de aproveitar meu momento. Não quero mais problemas. Vou me envolver com problemas dos outros?!

Mas recebi várias mensagens, vários e-mails, várias ligações e sempre alguém me pedia algum auxílio ou orientação. Pessoas de São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus. Pessoas desconhecidas. Apenas pediam ajuda. Pra divulgar alguma coisa, pra tentar conseguir uma vaga no hospital, pra agendar uma consulta, pra perguntar o que fazer.

E ao tentar ajudar timidamente, algumas pessoas que me procuravam, passei a presenciar um lado desse "mundo paralelo" que felizmente nunca vivenciei: as dificuldades.

Claro que nós enfrentamos dificuldades. Mas todas as que passamos até aqui, se resumem aos sofrimentos do tratamento em si. Ver minha filha chorar e se angustiar, faz parte do tratamento em busca da cura. É doloroso demais e por vezes parece ser insuportável. Mas esta era a nossa dificuldade.

Os custos nunca foram impossíveis de se pagar. Usamos nossas reservas, inspiradamente guardadas pelo Marcos, desde que nos casamos. Nunca nos faltou também, parentes, familiares e amigos para nos socorrer, nos abraçar e confortar. Até desconhecidos, genuinamente mobilizados, torciam e oravam em favor da pequena. E não eram poucos.

Entretanto, presenciar a negligencia absurda, para com as pessoas mais necessitadas, é MUITO angustiante. Eu não sou Madre Tereza de Calcutá, nem um exemplo de cidadã a ser seguido, mas se você presencia tantas barbaridades e vive sua “vidinha” (e seus próprios problemas) como se as barbaridades não existissem, acredite: Você não é um ser HUMANO. Você é apenas um SER.

Lógico que eu poderia (e estaria no direito) de evitar toda essa carga em cima de mim. Eu já tinha meus problemas e eles eram, de certo modo, muito grandes também. Mas quem é capaz de passar por um câncer infantil e simplesmente voltar a viver a vida como se nada tivesse acontecido? Como não se sensibilizar, quando temos o conhecimento sobre a dor que é encarar um tratamento de câncer, principalmente o infantil?

Me entristecia (além de causar indignação) saber que a grande maioria destas famílias, contava muito mais com a solidariedade dos outros, do que com o governo, propriamente dito. As crianças carentes com câncer não precisam apenas de solidariedade. Elas precisam de dignidade.

Nenhuma família, consegue sobreviver com o dinheiro pago pelo TFD – Tratamento Fora do Domicílio. No máximo, esse valor ajuda com alguma das despesas, mas estar “fora do domicílio”, implica antes de tudo, encontrar um domicílio para ficar. E nisso, as famílias tem que contar com a solidariedade de ONGs e Instituições filantrópicas, que abrigam essas pessoas, depois de critérios (e filas) gigantescas.

E os medicamentos? E o cuidado diário? E a alimentação? E a dignidade?

Sair de sua casa, do conforto do seio da família e dos amigos, para ir em busca de um tratamento, é algo muito triste. Vi muitas mães sozinhas, pais que perderam o emprego, familiares que pularam do barco. Eu vi o que é carência e necessidade, em meio a um problema tão grande.

As coisas, não precisavam ser assim em um país tão rico como o nosso. As crianças acometidas da pior e mais terrível e temida doença, necessitam de mais dignidade e respeito. Num país de dimensões continentais, TODOS os estados da Federação, invariavelmente, buscam o Estado de São Paulo para ter o melhor tratamento e aumentar as chances de cura.

Enquanto eu vejo tantos amazonenses vindo se tratar em SP, é impossível não se indignar com a construção do estádio mais caro da Copa do Mundo de 2014 em Manaus. Vamos tem um estádio moderno (e muito caro), para nossos parcos times se esbaldarem, mas vamos continuar enviando nossas crianças para São Paulo, porque não temos sequer uma UTI pediátrica no único hospital de câncer do Estado.

Temos uma das maiores e mais caras pontes construídas no País (que até hoje ainda não está funcionando), mas continuaremos tendo material hospitalar de péssima qualidade nos hospitais e postos de saúde do Amazonas.

Imaginar que nossa cidade, um dos maiores PIB do País, em pleno 2011, não tem condições de fazer determinados diagnósticos, por falta de estrutura física e capacidade técnica, é simplesmente incompreensível.

Aos dirigentes (e sociedade em geral - sim, também somos responsáveis), cabe apenas dois sentimentos: a indiferença, por acreditarem que tudo está perdido e por isso, dão de ombros à necessidade de tantas famílias e crianças. Ou a tristeza de não conseguirem fazer nada, culpando o “sistema”. Outros continuam e continuarão perpetuando o “lucro” que esta situação lhes proporciona. Outros jogarão a toalha e simplesmente dirão: “Não tem mais jeito”.

Ana Luiza me provou o contrário. Vi milagres. Vi um corpo tomado pelo câncer, voltar a ser um corpo livre de doença, contrariando estatísticas médicas de um dos melhores hospitais de câncer do mundo.

Minha filha me mostrou que é possível, SIM, tornar este tratamento mais humano. Que depende do paciente, mas que depende muito, das pessoas que estão ao nosso redor. O sorriso da recepcionista, o carinho da enfermeira, a atenção do médico. A solidariedade da pessoa desconhecida, a preocupação da mídia, o interesse dos políticos. Tudo isso, é capaz de minimizar a dor, que ela e que nós, familiares, passamos durante os últimos meses.

Mas a verdade inconteste é que a grande maioria dos cidadãos continuará entorpecida pela falta de fé, até um filho/sobrinho/parente/amigo deles adoecer. Essa é a verdade. E a grande maioria dos que são postos à prova ao serem diagnosticados com esta doença desgraçada, se tornam pessoas cansadas. Outras frustradas. E poucas realmente optam por continuar lutando contra o câncer, mesmo quando o seu próprio câncer já foi vencido.

A radioterapia do crânio teve fim. Ana Luiza estava radiante. Nada de máscaras amassando o rosto. Comemoração de todos nós. No dia seguinte iniciou-se a última etapa do tratamento: radioterapia do tórax e das vértebras.

Os médicos estavam felizes, os outros pacientes (tornados amigos), também comemoravam. Sempre que alguém concluía o tratamento e entrava na fase de acompanhamento/controle, era uma grande festa.

A felicidade e a ansiedade estampadas em minha cara, eram incontroláveis. Pouco mais de um mês, era o tempo que nos separava de nossa casa. E durante nosso momento triunfal, onde caminhávamos rumo a vitória, onde tudo era alegria... ao nosso redor, algumas coisas não estava dando muito certo.

A maioria de nós, tomaria a atitude mais comum: “Vou deixar de aproveitar minha felicidade, por causa da infelicidade dos outros?” Quantas vezes deixamos de compartilhar a dor dos outros, simplesmente porque não queremos perder nossos clima de “festa”? Eu estou feliz e lá vem aquele meu amigo triste, com seus problemas...

O que faz a diferença agora, é que sabemos que a tristeza de um amigo hoje, pode ser a minha tristeza amanhã.

Soraya, mãe da linda Giulia, nos avisou sobre uma piora repentina da pequena. Internada na UTI, o câncer de Giulinha parecia ter voltado a crescer. Uma dor sem medida atingiu meu coração. Seus pais, inconsoláveis, seguiam firme ao lado dela, lutando por sua vida. A matéria na revista Veja SP, mostrava uma criança feliz, se tratando de um câncer. Poucas semanas após a entrevista, a doença havia dado uma reviravolta. “Como somos frágeis e limitados”... pensei. E Giulia seguia internada na UTI do GRAAC-SP. E seus familiares apreensivos, seguiam tentando dar forças uns aos outros. A mim, cabia apenas, o papel de um amigo: Estar ao lado deles e me colocar a disposição para o que fosse necessário.

Num destes dias de visita, levei Ana Luiza comigo até o GRAAC-SP e ela, impedida de visitar Giulia na UTI, apenas escreveu um bilhete para Giulia e para seus pais. Paulo, pai da pequena Giulia ficou muito emocionado. A preocupação da minha pequena, não era com Giulia. Era com os pais dela. E ela estava certa. Nestas horas, quem sofre somos nós. Giulia seguia sedada e lutando para viver, tendo os melhores profissionais ao seu dispor. O sofrimento maior residia no coração daqueles pais. E era impossível dimensionar aquele desespero.

Em meio a tudo isso, o Celso, amigo da família, internado a longos dias, faleceu vítima de um câncer no pâncreas. Ana Luiza ia visitá-lo diariamente. Na época da internação de fevereiro/março/abril, quando ela ficou 47 dias internada, o Celso também estava internado. Na ocasião, Ana Luiza tinha feito um “plano de fuga” pra ele. Ele fugiria do quarto do hospital usando um balão de ar quente, enquanto ela fugiria usando balões de gás hélio! Demos muitas risadas, era impossível resistir ao bom humor da Ana Luiza!

Mas toda tarde, ao sair da Radioterapia, nós visitávamos o Celso. Muito fragilizado e já enfrentando seus últimos dias, Ana Luiza entrava no quarto dele dizendo: “Celso, você tá muito magro! Tem que comer mais! As enfermeiras estão fazendo você passar fome, né?”

Era doloroso vê-lo definhar. Mas Ana Luiza não via uma pessoa definhando. Ela via alguém que precisava de forças. E no final das contas, é isso mesmo que temos que fazer. Temos que continuar dando forças e continuar tendo fé, mesmo ao ver um corpo fraco e extremamente debilitado. O espírito precisa se manter forte e temos capacidade de fortalecê-lo com nossa fé.

Ana Luiza via apenas via um corpo que precisava de alimento. Ela não via a morte iminente. Sem querer, ela me dava mais um “tapa na cara”.

Quando dei a notícia de seu falecimento, Ana Luiza pareceu não se importar. Levantando os ombros e virando a cabeça para o lado, como quem diz: “fazer o quê, né?!” ela apenas disse: “Tá bom...” e continuou assistindo TV.

Fiquei um pouco surpresa com a atitude dela. Aos olhos ignorantes de uma mãe em aprendizado, poderia concluir que ela não tinha tanta afinidade com o Celso, ou que era indiferente à sua morte. Na verdade, a atitude dela era de naturalidade. A atitude real de uma pessoa que crê numa vida plena, longe desta Terra deveria ser essa. Morrer é apenas uma etapa da vida. E quando temos a certeza de que existe algo infinitamente melhor nos aguardando, entristecer-se e indignar-se, parece algo paradoxal.

A objetividade das crianças é uma das coisas mais maravilhosas deste mundo. Uma pena que a gente deixa de ser criança tão cedo e, o pior: tem pais que incentivam a maturidade precoce, exigindo de seus filhos atitudes que não lhes pertencem.

Três dias após esta notícia tão triste pra mim e muito dolorosa especialmente para minha mãe, que se colocou a inteira disposição da esposa do Celso, auxiliando-a com os trâmites burocráticos do envio do corpo para Boa Vista-RR, recebo mais uma pancada: Giulinha, com menos de 2 anos de idade, falecia vítima de um neuroblastoma avançado.

Antes de sair de casa para ir até o GRAAC-SP encontrar com os pais de Giulia e prestar minha solidariedade, expliquei para Ana Luiza, que Giulia tinha falecido. E mais uma vez ela apenas disse: “Tudo bem. Vá lá ajudar os pais dela.

Respirei fundo e, tentando ter pelo menos metade da força da minha filha, cheguei no hospital e encontrei com os familiares da pequena Giulia, que chorando me abraçaram. A pequena Giovana, irmã mais velha de Giulinha, de 8 anos, no meio de tudo aquilo, me afligia. Como suportar a dor da perda? Era a pergunta que não saía da minha cabeça. Como eles conseguirão seguir em frente?

Assim que Soraya saiu do elevador, a abracei forte e foi inevitável não derramar lágrimas. Diante de uma mãe que perdeu um filho, nada que você fale, é capaz de diminuir a dor no coração. Sendo mãe, apenas me coloquei em seu lugar e ao imaginar a perda de minha Ana Luiza, conseguia vislumbrar aquele sofrimento absurdo.

Me coloquei a disposição da família. Auxiliei nos trâmites relativos ao embarque do corpo para Manaus, confortei familiares e também fui até o apartamento deles, para ajudar com as malas. Antes de sairmos do hospital rumo ao apartamento, Soraya segurou minhas mãos e disse algo que me desmoronou: “A vitória da Ana Luiza será a vitória que minha filha não teve! Te amo, minha amiga e conte comigo sempre!”

Ouvir aquilo dilacerava meu coração. Que doença terrível, meu Deus! Que dor absurda aqueles pais estavam sentindo. Ao ver o Paulo, pai de Giulia, chorando desesperado, pude visualizar o amor que eles sentiam pela filha. Que sofrimento absurdo! E em pensamento, pedi o consolo aos pais e familiares, mas não deixei de implorar a Deus, que me poupasse dessa dor. Fiquei com eles durante toda a tarde e início da noite. Arrumei a mala da Giulia. Dobrei cada roupinha cuidadosamente e enquanto eu fazia isso, podia ouvir o choro angustiante de Soraya e Giovana. Os auxiliei no que pude e voltei pra casa.

Entrei no apartamento e sem chorar, apenas abracei Ana Luiza. Ela detestava choro e também não era muito fã de abraços longos. Contei o ocorrido a minha mãe, meu braço direito (e esquerdo) aqui em SP e tentei me reequilibrar depois da terrível pancada. Com o coração apertado pela dor daqueles pais e pelo medo de um dia fazer parte deste grupo, me restava apenas buscar consolo em Deus.

E no meio de tudo isso, mais notícias ruins: Fabiana, que já enfrentava uma barra com o câncer no intestino, teve uma piora repentina. Foi internada às pressas e precisou submeter-se a cirurgia, afinal o câncer continuava crescendo. Ela já tinha sido incluída nos cuidados paliativos, pois segundo os médicos, não existia mais chance de cura para a doença. Era possível apenas melhorar/manter a qualidade de vida dela. Aquela piora, deixava todos muito tristes. Ninguém quer entrar numa luta tão árdua pra sair derrotado. E não ter a cura definitiva, para a grande maioria, é sinal de derrota.

Mas será uma derrota mesmo? Pelo que testemunhei, o importante é lutar dignamente. É conseguir aprender em meio ao sofrimento. É a reflexão. E isso jamais poderia ser considerado uma derrota. Derrotado é aquele que viveu e nunca foi capaz de refletir, tendo sofrido de câncer ou não.

Mas apesar de tantas notícias ruins, Ana Luiza seguia firme na radioterapia. Comecei a me preocupar com os enjoos frequentes e a falta de apetite. Eventualmente ela relatava dor de cabeça e aquilo também me deixava preocupada.

Em uma ida ao hospital, conversei com uma das pediatras, que me assegurou que eram efeitos da radioterapia. E conversando com outras mães, tudo indicava que realmente fosse isso. Me tranquilizei, como todas as mães se tranquilizam: com um olho fechado e outro aberto.

Os exames de sangue estavam ótimos, então era momento de aproveitar. Cinema, passeio no sítio, shopping. Minha fiel escudeira, vovó Aldenora, precisou ir até Boa Vista e foi prontamente substituída pela dupla vovó Eliane e vovô Calmon. Marcos também ficou alguns dias conosco, pois na próxima semana teria uma viagem a trabalho, para Argentina, e ficaria alguns dias sem poder nos visitar.

Quando os quatro avós estavam todos em SP, Ana Luiza ficava nas nuvens. Mas quando o “puí” estava conosco, ela não queria saber de mais ninguém. Adorava o “cheirinho do Puí”, adorava tirar sarro de mim, aproveitando as ideias do Marcos. Era bom demais estarmos todos juntos, essa é a grande verdade.

Ana Luiza estava nas nuvens. Super entusiasmada com as visitas, adorando os passeios e muito feliz porque seu cabelo estava crescendo de novo. Eu também estava muito feliz. Me sentia uma verdadeira privilegiada por estar tendo êxito no tratamento. Agradecer diariamente a Deus me parecia completamente insuficiente.

Diante de tantas perdas, meu sentimento ao ver minha filha super bem, era o mesmo de um ganhador da mega sena. Fomos contemplados e nenhuma alegria se comparava a esta sensação. Tudo na vida é uma questão de perspectiva.

Aproveitando a chegada do vovô Calmon, que vinha de carro, de Belo Horizonte para São Paulo, fomos passear num shopping mais distante de casa. Ana Luiza não queria saber de entrar em lojas. Foi direto para a Livraria Saraiva com o vovô, como ela sempre fazia. Eu fiquei com vovó Eliane, entrando de loja em loja a procura de algo que nem lembro o que era.

Na hora de voltar, nos perdemos e pegamos um trânsito terrível. Em meio ao trânsito caótico de São Paulo, Ana Luiza, com sua excelente percepção das coisas, apenas disse: “Ah vovô! Tudo na vida tem um lado bom e um lado ruim. O lado ruim é que estamos no trânsito, mas o lado bom é que estamos todos juntos.” Demos risadas e era impossível não concordar. Realmente, perspectiva é tudo.

Um dia, uma repórter da TV Bandeirantes me telefona e informa que o Departamento de Pediatria do Hospital, tinha lhes dado nosso contato e eles gostariam de fazer uma reportagem sobre a vida de pacientes com câncer. Sobre as vitórias e sobre a retomada da vida, após o diagnóstico.

Fomos ao hospital e filmamos. Foram quase 4 horas de “convencimento”. Ana Luiza detestava câmeras. A repórter, experiente e incrivelmente simpática, levou algumas horas para conseguir arrancar a espontaneidade de Ana Luiza. Conversaram, brincaram e finalmente ela aceitou ser filmada.

Eu estava simplesmente feliz. Faltava menos de 1 mês para o fim do tratamento e Ana Luiza estava linda, alegre e confiante. Tudo aquilo foi evidenciado na reportagem.

Naquele mesmo dia, a médica responsável pelo tratamento, que também foi entrevistada, convidou Ana Luiza para um acampamento bem divertido, organizado e patrocinado pelo hospital. A jornalista queria muito que ela fosse, pois as brincadeiras também seriam filmadas e fariam parte da reportagem.

Ela disse que não iria “de jeito nenhum”. Só iria se eu também fosse. Eu não sei dizer se aquilo me deixava triste ou feliz. Triste por saber que talvez ela tivesse algum tipo de insegurança e necessitasse da minha presença, mas feliz por saber que ela me queria sempre por perto. Mas a incentivei muito, afinal sua médica, enfermeiras e professoras do hospital estariam todas lá. Ela estaria muito mais segura com eles do que comigo.

Mas ela disse que só iria sob uma condição: Se sua amiga Beatriz, amazonense de 16 anos em tratamento de um osteossarcoma condroblástico, também fosse. E mais: dormisse no mesmo dormitório que ela.

Acordo feito, agora era esperar pelo dia 10 de junho, quando Ana Luiza passaria o final de semana inteiro longe da mamãe, pela primeira vez na vida.

Marcos voltou para Manaus, mas deixou um bilhete e uma borrifada de seu perfume no travesseiro de Ana Luiza. Ela adorou. Passou o dia com o travesseiro na mão, cheirando o perfume do papai.

Ela me perguntou porque ele tinha que ir embora e eu expliquei que ele precisava trabalhar, pois tinha que pagar as contas, afinal eram duas casas agora, a de Manaus e a de São Paulo. Além disso, expliquei que eu não estava trabalhando desde setembro e isso diminuía muito o dinheiro. Então Marcos precisava voltar pra trabalhar, enquanto a gente terminava o tratamento.

Usando sua objetividade, Ana Luiza, com cara de atrevimento, apenas disse: “Você é uma folgadinha, hein mãe? Então meu pai tem que voltar, porque você não tá trabalhando, né?!

Eu dei muita risada. A “folgada” aqui, estava cuidando da própria filha e ela ainda me culpava porque o pai precisava voltar pra Manaus. Eu expliquei que estava cuidando dela e, rindo, ela me abraçou e disse: “Eu sei mamãe! Obrigada por cuidar de mim!