segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

10 a 30 de novembro: Pouco tempo, muitos fatos.

Quimioterapia

Arrumar as malas para uma internação programada é muito mais tranquilo, mas não é garantia de que não vai faltar alguma coisa. Peguei praticamente tudo que eu julguei ser necessário e estava torcendo pra voltar pra casa com a mesma quantidade de mochilas. O apartamento do tio Cláudio e da tia Olímpia estava mais quieto, sem a “equipe” completa de cuidadores oficiais da Ana Luiza. Eramos somente eu, minha mãe e a pequena. Meus sogros, Marcos e meu pai já tinham ido embora.

Chegamos ao hospital e após um bom tempo esperando, conseguimos nos instalar em um dos quartos do quinto andar. Ana Luiza, como sempre, estava falando e conversando com todas as enfermeiras. Até aí estava tudo muito “legal”, eis que surge a primeira agulha. Minha pequena, de certa forma, estava mais habituada ao ritual de colocação da agulha no cateter. Apesar de parecer dolorido, era menos pior do que tentar pegar um acesso periférico no braço ou na mão, aquilo sim era um verdadeiro desespero.

Tudo tranquilo na colocação da agulha e as enfermeiras iniciaram a aplicação dos medicamentos pré-quimioterapia. A essa altura, Ana Luiza já sabia o nome de todos os remédios, a ordem de aplicação e o horário de cada um deles. Já sabia quem eram as “tias” mais legais, já exigia comidas preferidas para a nutricionista, já orientava os fisioterapeutas sobre a sequência de exercícios que ela fazia. Personalidade nunca havia faltado e agora parecia estar sobrando... Totalmente “mandona” e cheia de si.

Fazer quimioterapia durante 9h seguidas, por 2 dias, utilizando quatro tipos de drogas extremamente agressivas é muito desgastante pra qualquer um, para uma criança tão pequena e frágil parecia ser ainda pior. Mas a segurança e a força da pequena não vinham de mim. Deus sempre esteve ao lado dela e nessas horas a gente tem a certeza de que Ele realmente é poderoso.

Ana Luiza quis ir para a escolinha pediátrica, brincar e colorir. Ela fez amizade com um menino chamado Marquinhos, de 9 anos, que também está em tratamento e eles brincaram com vários jogos de tabuleiro. Fiquei observando e notei que aos poucos as feições dela estavam mudando. Parecia fraca e sonolenta e perguntei se ela não queria ir pro quarto descansar um pouco.

Ela concordou, mas perguntou se o Marquinhos poderia continuar brincando com ela no quarto. Eu disse que não tinha problema e ela se levantou da cadeira pra sair da escolinha quando de repente, desfaleceu.

Meu coração acelerou e Ana Luiza não conseguia ficar em pé. Estava muito fraca e parecia que iria desmaiar. Segurei ela no colo e ela estava totalmente sem vigor. Não conseguia nem segurar no meu pescoço. Parecia que iria desmaiar a qualquer momento. Saí com ela no colo, correndo até o quarto enquanto minha mãe empurrava o suporte do soro e dos medicamentos. Eu conversava com Ana Luiza o tempo todo e ela, ainda consciente, só estava preocupada com Marquinhos, pedindo pra que eu avisasse o número do quarto pra ele ir visitá-la. Mas parecia estar delirando, sei lá...

Coloquei ela na cama e chamei as enfermeiras. Ana Luiza ainda estava acordada, mas sonolenta e com a fisionomia muito exausta. A enfermeira verificou os sinais vitais dela e estavam todos normais e disse que avisaria o médico.

O oncologista de plantão informou que aquilo era uma reação esperada de uma das drogas e que ela poderia, inclusive, perder a consciência. Como a pequena permaneceu consciente e com sinais vitais normais, ele pediu que ficássemos atentas e qualquer coisa anormal, avisássemos a enfermagem.

Ana Luiza cochilou. Obviamente nem eu, nem minha mãe saímos do lado dela. Em meus pensamentos, só conseguia agradecer a Deus por ela estar bem. Mas que susto absurdo! Que desespero carregar ela nos braços, como se estivesse desmaiada. Só de lembrar me faltava o ar...

O segundo dia de quimioterapia foi tranquilo e no dia seguinte recebemos alta. No momento da alta, os médicos confirmaram a necessidade de realização dos exames de imagem e explicou que eles eram imprescindíveis para avaliação da resposta ao tratamento e que as próximas etapas dependeriam dos resultados obtidos.

Sempre muito pragmáticos, os médicos não transpareciam muitas esperanças. Meu coração ficava muito apertado, de tanto medo e ansiedade por causa desses exames, mas na verdade o que importava no momento da alta é que Ana Luiza estava superfeliz por poder ir pra casa. Na verdade, ela estava feliz por dois motivos: Estava indo pra casa e o papai já estava lá esperando por ela. Marcos havia conseguido passar o feriado do dia 15 de novembro em SP e nós duas estávamos muito felizes. Infelizmente o Marcos só pôde ficar por alguns dias, mas sem dúvidas valeria a pena. E no mesmo dia que Marcos voltou para Manaus, meu pai veio de Boa Vista para ficar uns dias conosco.

Os dias em casa

Exatamente no dia em que Marcos foi embora, saí a pé para comprar pão com meus pais e Ana Luiza e tive uma dor muito forte no baixo ventre. A dor era exatamente a mesma que tive uma semana antes de Ana Luiza ter os episódios de vômito em Manaus, que culminaram com o terrível diagnóstico. Logicamente eu larguei minha saúde para último plano.

Não suportando a cólica absurda, meu pai me levou ao pronto socorro. Chegando lá, expliquei tudo para a médica que me atendeu. Contei sobre o episódio em Manaus ocorrido no mês de setembro e, antes que ela me chamasse de relapsa, expliquei que interrompi a investigação da causa, por causa de minha filha. Contei, resumidamente, o caso de Ana Luiza e meu problema pareceu tão pequeno que a médica só queria saber sobre ela. Achei engraçado o interesse da médica. Ela disse que todas as noites rezava por um paciente e que naquela noite ela rezaria pela minha filha. Eu chorei e agradeci. Finalmente fiz diversos exames e o ultrassom identificou cistos hemorrágicos ou endometriomas relativamente grandes no meu ovário direito. A médica me forneceu o contato de uma colega para começar o tratamento e me garantiu que eu me restabeleceria rapidamente.

Passado o susto e durante os dias em casa, os cuidados com a boca de Ana Luiza triplicaram. A experiência anterior, com o período pós-quimioterapia e o problema da mucosite nos deixaram super traumatizados. Ana Luiza fazia higiene oral o tempo todo, com diversas substâncias profiláticas e graças a Deus, ela não teve nada de mais grave na mucosa da boca, conseguia se alimentar bem e o período posterior a quimioterapia estava sendo tranquilo... até ela tentar ir ao banheiro fazer cocô.

Toda e qualquer mucosa do corpo fica afetada com a quimioterapia e a mucosa anal não seria diferente. Ela estava com muita dificuldade para ir ao banheiro. E um dia antes da consulta pós-quimioterapia, ela chorou de dor pois o bumbum estava muito sensível e dolorido.

Fomos para a consulta com os oncologistas e a médica examinou o bumbum, receitou medicamentos, laxantes e banhos de assento, que aliviaram muito o desconforto da pequena.

Neste mesmo dia, no período da tarde, Ana Luiza teria a tal bateria de exames para se submeter: Ressonância Magnética de crânio e coluna vertebral, tomografia de tórax e abdome e cintilografia óssea. Todos eles para avaliar a resposta a quimioterapia.

Meus pais estavam muito apreensivos e eu não estava diferente: muito nervosa, ansiosa, preocupada, afinal aqueles exames significavam os próximos passos para o tratamento. E por mais que eu tentasse confiar no poder de Deus e me cercar de bons pensamentos, inevitavelmente eu pensava no pior: As imagens mostrariam que tudo estava do mesmo jeito ou pior. Me embrulhava o estômago pensar nisso. Imaginava o desespero dos nossos pais, dos amigos distantes, dos parentes...

Por mais que parecesse “falta de fé” da minha parte, uma frase não saía da minha cabeça: “Em tudo dai graças”. Eu estava tentando me conscientizar de que mesmo que as imagens não mostrassem o que nós gostaríamos, eu teria que continuar tendo forças. Eu deveria continuar agradecendo a Deus por tudo, inclusive pelas provações.

Meditei muito durante a longa espera para iniciar os exames. Orei e pedi, mais uma vez, forças para suportar. Enquanto Ana Luiza jogava videogame esperando ser chamada, eu comecei a imaginá-la em situações no futuro: imaginava ela com 15 anos, querendo viajar com os amigos. Imaginava ela estudando pro vestibular, indo pra faculdade. Imaginava a formatura dela, o casamento... quem seria o sortudo, que teria o amor dessa super-heroína? Ocupei minha mente com bons pensamentos, mas estava certa de que agradeceria muito a Deus, mesmo que os resultados não fossem aqueles que todos nós aguardávamos.

A tomografia foi rápida. Ela teve que fazer um acesso periférico (agulha no braço), para tomar o contraste. O choro foi grande, mas ela foi consolada por uma multidão de adultos que aguardavam para submeter-se aos exames também. Alguns pela primeira vez, ainda na fase de investigação da doença, que pelo rosto transpareciam desespero. Outros, fazendo controle, encorajavam-na dizendo que tudo aquilo iria passar e que ela estava de parabéns por ser tão corajosa aos 7 anos...

Durante a realização da ressonância magnética, que demorou mais de 1 hora pra ser realizada, Ana Luiza dormiu. Ela precisava ficar imóvel e o fato dela ter cochilado considerei um presente de Deus. Enquanto os médicos avaliavam as imagens, eu só conseguia olhar pra baixo. Coloquei a cadeira de costas para a sala de comando onde os médicos ficavam e não olhei uma vez sequer na direção deles. Tinha pavor de olhar na cara dos médicos e tentar decifrar a expressão de cada um deles. Mantive meu olhar o tempo todo no chão ou na Ana Luiza. Preferi me concentrar nas orações, do que tentar decifrar a cara dos médicos e acabar “morrendo” por antecipação.

Saímos da sala e Ana Luiza estava muito sonolenta. Aos poucos foi despertando e disse que estava com fome. Chegamos ao setor de Medicina Nuclear para a realização da Cintilografia Óssea e ela ganhou um lanche das enfermeiras do setor. Comeu bolo de chocolate com suco de uva enquanto aguardava 2 horas para fazer o exame. Eu fiquei realmente aborrecida com a demora, mas infelizmente era necessário, pois somente 2h após ter recebido a substância radioativa ela poderia ser avaliada com mais precisão no equipamento médico.

Durante as duas horas de espera, ouvi muitas histórias. Orei pela vida da minha filha e pela vida de dezenas de pessoas que também estavam aguardando. Que doença cruel e avassaladora! Mas felizmente, todas as pessoas que tive a oportunidade de conversar estavam muito esperançosas. Outras, ainda assustadas com o diagnóstico recém recebido, choravam e tentavam resignar-se com sua situação. Se o câncer tem algo de positivo, é que ele torna as pessoas mais humanas. Acho que é porque nesses momentos temos a exata noção de que não temos poder algum, que somos completamente frágeis e insignificantes e, que a qualquer momento, podemos sumir deste planeta. Depois de uma notícia bombástica de um câncer, cada dia é vivido com mais intensidade, mais vontade e, principalmente, mais humildade.

Ana Luiza já estava exausta, mas cada vez que chegava alguém na sala de espera ela puxava papo. Pegou telefone de algumas mulheres, convidou outras tantas para nos visitar... estava numa alegria sem fim. Na verdade, EU estava muito mais exausta, tamanha era minha tensão.

Fomos para casa e meus sogros já estavam no apartamento nos aguardando. Ana Luiza ficou no paraíso por alguns dias: os quatro avós no apartamento, paparicando e enchendo ela de mimos. Infelizmente meus pais precisavam voltar para Boa Vista, para resolver pendências no restaurante.

Ana Luiza sempre foi muito, MUITO próxima de minha mãe. Desde bebê, sempre teve uma ligação muito forte com ela. E despedir-se da vovó era um tormento. Para as duas na verdade. E sempre foi, desde muito antes desse problema todo começar. Entretanto, desta vez foi um verdadeiro drama. Minha mãe chorava de um lado e minha filha do outro. Minha mãe chegou no aeroporto ainda chorando e minha filha, horas depois de minha mãe ter ido embora, corria pra pegar uma foto da vovó e chorava abraçada com a foto. Era de partir o coração.

Mas vovó Eliane sabia como dar um jeito naquela tristeza. Tratou de animar a pequena com muitas histórias engraçadas e músicas dançantes e no fim do dia, Ana Luiza já estava mais animada. A saudade da Vovó Aldenora continuava grande, mas a substituição tinha sido bem sucedida.

Ficamos apenas meus sogros, Ana Luiza e eu. Vovô Calmon tentou animá-la com um passeio de carro pela cidade. Ela gostou mesmo, foi do som do carro, o tempo todo tocando músicas do Luan Santana, para desespero do Marcos, que sempre a desincentivou a gostar do estilo sertanejo. A vovó Eliane não queria saber: colocava o som no máximo e dançava com a pequena dentro do carro!!

Queda da imunidade – Nova internação

A imunidade começava a cair. Os dias críticos estavam chegando e Ana Luiza teve novamente, uma pequena febre. Apesar de estar se alimentando bem e a mucosa da boca estar razoavelmente aceitável, o bumbum ainda incomodava. A temperatura de Ana Luiza chegou aos 37,5ºC no início da noite. Passei a madrugada inteira verificando a temperatura, que oscilava o tempo todo. Às 5h da manhã Ana Luiza estava com 38ºC de temperatura. Levantei da cama, peguei algumas compressas frias e tentei baixar a temperatura, que voltou para os 37,5ºC. Às 6h30min, a temperatura voltou para os 38ºC e infelizmente tivemos que ir para o Hospital mais uma vez.

Arrumei uma pequena mochila e pegamos um táxi até o hospital. Meu sogro ficou no apartamento arrumando tudo e encontrou conosco quando ela já estava internada. Após todos os protocolos normais da internação pelo pronto socorro (exame de sangue, raios X, exame de urina, etc), durante a colocação da agulha do cateter, algo não parecia normal. O soro e os demais medicamentos não fluíam adequadamente no equipo. As gotas desciam muito lentamente e aquilo me preocupou, mas as enfermeiras pareciam tranquilas, então tratei de não me apavorar.

Fomos para o quarto no 5º andar e felizmente tudo parecia bem. Ela não teve mais febre, a boca estava razoavelmente bem e estava conseguindo se alimentar normalmente. Mas apesar de eu ter informado sobre o bumbum e sobre os medicamentos que ela estava usando em casa, a equipe de enfermagem não os trouxe e, após ficar quase 24 horas sem tomar os laxantes, o inevitável aconteceu: sangue e muita dor ao defecar. O bumbum ainda estava muito sensível e uma quantidade considerável de sangue, saiu junto das fezes no momento da evacuação. Ana Luiza chorava de desespero e gritava de dor. Minha sogra estava assustada e eu, mais uma vez, tinha que manter a calma. Eu precisava limpá-la, lavar bem o local e aplicar o medicamento para evitar alguma infecção, mas Ana Luiza, gritando e chorando muito, não deixava. Eu precisava ser enérgica com ela, mesmo querendo chorar junto. Ana Luiza se debatia gritando de dor e tentando me impedir de limpá-la, e segui firme, fazendo o que eu deveria fazer: cuidar dela.

Passado o desespero, os médicos a avaliaram e tudo estava bem. Regularizaram os medicamentos, laxantes e banhos de assento e tudo parecia voltar ao normal. Mas infelizmente o acesso pelo cateter não estava funcionando adequadamente. Ele não tinha nenhuma obstrução, nenhuma inflamação ou infecção mas, misteriosamente, não fluía adequadamente na bureta, o que acabava atrasando os antibióticos. As enfermeiras estavam angustiadas com aquilo e resolveram trocar a agulha na esperança de que melhorasse o fluxo. Sempre que “lavavam” o cateter com soro, ele fluía normalmente, mas ao colocar o soro no suporte, voltava a fluir muito mal. Elas se desdobraram para aplicar os medicamentos no horário e fomos levando a situação.

Naquele momento o que mais me preocupava não era a agulha do cateter, mas os resultados dos exames. Os exames de imagem sairiam com Ana Luiza ainda internada e eu deveria levar os resultados para os médicos antes que ela recebesse alta. Aquilo estava tirando meu sono e toda a minha tranquilidade. Eu estava, definitivamente, muito ansiosa e preocupada.

Ainda no início da internação, o pai biológico de Ana Luiza nos telefonou informando que estava em SP e que gostaria de visitá-la. Avisei a pequena e ela ficou muito animada em recebê-lo. Estávamos na escolinha pediátrica quando ele chegou e os dois brincaram juntos de jogo da memória.

Retornamos para o quarto do hospital pois ela precisava ser medicada e durante o tempo em que ele permaneceu com ela, não me perguntou absolutamente nada sobre os detalhes do tratamento, ou qualquer coisa relativa aos próximos passos, mas assim que meus sogros deixaram o hospital para ir até o apartamento, ele me perguntou se eu poderia ajudar-lhe com uma situação.

Ele explicou que necessitava de um Laudo Médico referente ao estado de saúde de Ana Luiza, para apresentar no trabalho, pois havia sido nomeado para participar de uma sindicância na secretaria estadual onde estava lotado e, portanto, necessitava justificar sua ausência nas reuniões que estavam ocorrendo naquela semana.

Peguei minha pasta de documentos e mostrei a ele o relatório médico que eu dispunha e que tinha me servido para uma finalidade similar (justificar minha ausência do trabalho e solicitar licença não remunerada por tempo indeterminado e o Marcos ter 15 dias de licença no trabalho).

O documento explicava detalhadamente a doença, a data da internação no hospital, a necessidade de Ana Luiza ser acompanhada e que ela estava sendo acompanhada por mim desde o começo, sem previsão para alta do tratamento. Entreguei o documento original a ele, que disse que tiraria cópia e me entregaria de volta.

Ele saiu do quarto e em poucos minutos retornou, dizendo que não precisaria mais da cópia, pois havia conversado com as enfermeiras no posto de enfermagem e elas iriam providenciar um documento original igual àquele, mas com o nome dele, pois aquele não serviria, afinal estava em meu nome.

Eu tomei um susto afinal o documento era claro. E se ele receberia uma cópia IGUAL em nome dele, seria atestando que ele estava acompanhando Ana Luiza, o que não era verdade. Ele esteve visitando-a, por algumas horas e em determinados dias e só. Tudo além daquilo seria uma inverdade. De boas intenções, o inferno está cheio e infelizmente, levando em consideração que estamos em uma disputa judicial, achei prudente comunicar o Marcos sobre o assunto.

Marcos entrou em contato com o hospital e solicitou que nenhum documento fosse entregue a terceiros, parentes de Ana Luiza ou não e que somente ele ou eu, poderiam ter acesso aos documentos médicos de Ana Luiza.

A assistente jurídica do hospital explicou o fato ao pai biológico e lhe entregou apenas o que ela, por dever, e ele, por direito, poderiam ter acesso, que era uma declaração de comparecimento e um resumo do estado de saúde de Ana Luiza (este último, sob meu consentimento).

Eu tentei não me chatear com a situação. Apesar de estar uma “pilha” por causa dos resultados dos exames, eu tirei da minha cabeça qualquer pensamento ruim. Se o pai biológico precisava justificar a ausência do trabalho, ele que utilizasse a verdade e ela era apenas uma: Ele decidiu visitar a filha nas datas das reuniões já estabelecidas para a tal sindicância e o documento fornecido pelo hospital dizia exatamente isso.

Ele foi embora, nitidamente insatisfeito com o documento, mas infelizmente eu não podia fazer nada. Certos documentos, na mão de certos advogados, podem se tornar um prato cheio para qualquer coisa. E depois de tantos absurdos que eu havia lido na petição inicial apresentada por ele à justiça, eu simplesmente não podia me dar o luxo de ser ingênua. Acho que todos sabem o que quero dizer.

Entrega dos resultados dos exames

Mas o que ficava martelando o tempo todo na minha cabeça, eram os resultados dos exames. Aquilo estava me deixando em frangalhos. Qualquer outra coisa era apenas insignificante perto da preocupação com os resultados dos exames. Eu tudo que eu queria era Marcos ao meu lado. Quem iria me segurar se eu desabasse, caso o resultado não fosse bom? Fiquei dois dias sem dormir direito. Toda vez que pensava nos exames, meu estômago embrulhava. No dia em que os exames estariam prontos, deixei Ana Luiza, que ainda estava dormindo, com minha sogra e fui até o setor para recebê-los.

Durante todo o trajeto do 5º andar até o setor de imagens, fui orando. E em pensamento agradeci por tudo até aquele momento, agradeci pela força da minha pequena. Agradeci a nossa condição financeira que nos permitia estar naquele hospital, nos permitia dar todos os cuidados necessários em casa. Agradeci por ter onde ficar, pelo excelente apartamento dos tios do Marcos, cedidos carinhosamente. Agradeci porque ela pouco havia emagrecido e conseguia se alimentar adequadamente. Imaginei quantas mães não estariam chorando nesse momento, por não poder dar aos próprios filhos, nem metade dos cuidados que estávamos dando a Ana Luiza e tudo aquilo era muito claro pra mim: misericórdia de Deus.

Entrei no setor de imagens, peguei uma senha e me sentei. Fechei os olhos e continuei com meus pensamentos em Deus. Naquele momento, que durou pouco mais de 5 minutos, eu apenas pensei no poder de Deus. Aquele poder que a gente acha que não vivencia nunca, sabe? Aquele poder que está muito distante e só recebe quem é “merecedor”? O fato é que ninguém é merecedor. Estamos todos exatamente no mesmo barco. Só vivemos por misericórdia e ainda bem que elas se renovam todos os dias. Deus nos dá chances, diariamente, de fazer o que agrada o Seu coração. Mas mal conseguimos agradecer o alimento do dia, mal conseguimos olhar para o lado estender a mão para um desconhecido. Agradecer ao invés de reclamar não é comum para seres humanos tão fracos como na gente.

Isso não tem nada a ver com religião. Tem a ver com gratidão, amor ao próximo, solidariedade... lições dadas por Jesus há mais de 2 mil anos. Que vergonha pra mim! Ter que aprender isso nessas circunstâncias!

Somos tão prepotentes em achar que só o fato de acordar respirando não é milagre de Deus! Hoje podemos ir dormir e simples e misteriosamente acordar com um câncer na cabeça. Em pensamento eu afirmava que Deus tinha o poder para mudar, naquele exato momento, todas as imagens. Ele tinha o poder para mudar a redação dos laudos, num passe de mágica. Mas Ele só faria aquilo, se fosse da vontade dEle e com um objetivo muito definido. Pra mim, Deus nunca teve cara de papai noel, muito menos de “mágico”. Ele não é um “gênio da lâmpada” que está a meu dispor, para fazer a minha vontade o tempo todo, como aquele pai que estraga seus filhos, sabe? Dando tudo que eles pedem, na hora que pedem...

Deus age misteriosamente. Só nos resta confiar em Seus planos. Eu nunca fui merecedora, mas Deus conhece o meu coração. Ele sabe do desejo que tenho de ter minha filha curada e nossa vida restabelecida. Eu não consigo sequer imaginar perder minha filha. Mas só me restava aceitar Sua vontade.

Respirei fundo quando minha senha foi chamada no painel. Recebi vários envelopes e a atendente disse que o laudo definitivo da tomografia de tórax ainda não estava pronto e pediu que eu retornasse em 1h, para buscá-lo. “Bom, vai ficar faltando apenas o resultado dos pulmões”, pensei eu.

Saí do setor de imagens me tremendo dos pés a cabeça. Não conseguia abrir os envelopes de jeito nenhum. Não sabia nem pra onde ir. Olhei para o celular e o sinal estava muito ruim. Precisava falar com Marcos. Fui correndo para a saída do hospital e quando cheguei na rua, liguei pra ele. Assim que ele atendeu, comecei a chorar. Ele me acalmou e pediu pra eu abrir os envelopes.

Enquanto eu tentava parar de chorar e de tremer, eu também tentava ler os laudos. Apesar de ler para o Marcos, eu não processava direito as informações. Marcos também ficou confuso, a ligação estava ruim e ele deve ter se sentido totalmente impotente com o meu desespero. Os resultados contidos nos laudos, pareciam bons, mas minha incapacidade de manter a calma só atrapalhava o raciocínio. Avisei ao Marcos que iria para a pediatria solicitar que um dos oncologistas me atendesse para explicar com calma sobre o resultado dos exames e que ligaria pra ele logo em seguida.

Esperei quase uma hora por um dos médicos. As minhas mãos estavam suadas, não conseguia prender o choro e a recepcionista me pedindo calma, ofereceu um copo d'água. Eu não sabia se deveria ficar feliz ou triste. Eu estava confusa, mas o pânico era tão grande, que eu não tinha coragem de ler os laudos com calma. Achei mais prudente que o médico abrisse os envelopes, lesse tudo e me explicasse.

Enquanto eu aguardava um dos médicos ficarem disponíveis, minha sogra liga no celular e avisa que Ana Luiza ainda estava dormindo (já era aproximadamente 1h da tarde) e que as enfermeiras estava preocupadas com o controle hídrico, pois ela ainda não tinha bebido nada e tampouco feito xixi.

Corri dos consultórios até o 5º andar para tentar acordar a pequena. Ela estava sonolenta, mas tinha uma razão. Foi dormir muito tarde na noite anterior. Consegui acordá-la com muita dificuldade, mas ela tomou um copo d'água, fez quase 600ml de xixi e quis voltar a dormir. Enquanto eu tentava convencê-la a ficar acordada, a chefe da oncologia pediátrica ligou no telefone do quarto e eu atendi. Ela disse que a recepcionista tinha avisado da minha presença e perguntou se tinha acontecido alguma coisa com Ana Luiza.

Expliquei que eu queria conversar com um dos médicos, sobre os resultados dos exames e ela pediu que eu descesse imediatamente. Deixei Ana Luiza com minha sogra e corri para o Setor de Pediatria. Chegando lá, entrei no primeiro consultório que estava com a porta aberta. O médico que estava na sala, era um dos que estavam fazendo o acompanhamento da Ana Luiza. Ele perguntou o que tinha acontecido, pois eu parecia muito assustada. Coloquei os exames em cima da mesa e assim que comecei a falar, desabei num choro descontrolado.

Não conseguia nem falar direito. Mal expliquei que não tive coragem de ler os laudos e caí em prantos de novo. Ele respirou fundo, como se realmente me compreendesse, tentou me tranquilizar, pegou os envelopes e pausadamente disse: “Calma mãe! Nós vamos abrir os envelopes juntos e você precisa ter forças! Você fez bem em não abrir. Vamos lá...”

Ele pegou o 1º envelope, abriu e com os olhos arregalados disse: “Vamos à primeira boa notícia!” Eu, ainda chorando, tentava me acalmar para ouvir com atenção. Ele leu o laudo da ressonância magnética de coluna vertebral que dizia: “Controle pós-terapêutico de rabdomiossarcoma, sem evidências de lesões em atividade. Em relação ao exame anterior de 30/09/2010 houve desaparecimento das áreas de realce anômalo pós-contraste”

Eu comecei a dar um sorriso nervoso, mas não conseguia parar de chorar. Aí ele virou a página e leu o resultado da ressonância magnética do crânio, que dizia: “Formação expansiva na topografia do ápice petroso esquerdo. Em relação ao exame anterior, de 20/09/2010, realizado em outro serviço, houve redução significativa das dimensões da lesão”.

O médico riu e eu continuava chorando. Balançando a cabeça, como se também estivesse surpreso com tudo aquilo, ele pegou mais um envelope e disse: “Agora a terceira boa notícia: Ela não tem mais nada na perna. A cintilografia está dentro da normalidade”.

Enquanto eu chorava muito, num misto maluco de alegria, desespero, alívio, gratidão e um monte de outros sentimentos que eu nem conseguia distinguir, ele relia com calma os laudos. Acho que pelo barulho que eu fiz enquanto chorava, as duas outras médicas que acompanham Ana Luiza apareceram na porta do consultório. A chefe da oncologia, assutada, perguntou o que estava acontecendo. Eu tentava explicar e chorava mais ainda. O médico tomou a palavra e olhando diretamente pra mim, nitidamente muito emocionado, explicou com calma: “Mãe, esse resultado foi a melhor resposta possível. A redução da lesão na cabeça foi muito grande e ela não possui mais metástases. Ainda não temos os resultados do pulmão, mas tudo indica que haverá redução ou desaparecimento também. Ela não teve apenas uma redução. Foi uma redução significativa da lesão principal. A gente sempre torce por bons resultados como este que ela está tendo, e eu sempre torço para dar boas notícias aos meus pacientes. A família de vocês mexeu muito comigo desde o início, desde quando estive com vocês na UTI para avaliá-la. Esse resultado é ótimo!”

Ele foi interrompido pela chefe da oncologia que, mais pragmática disse: “Temos que ter calma. A grande maioria dos rabdomiossarcomas parameníngeos não são operáveis, em virtude das sequelas serem grandes. E infelizmente em alguns casos temos recidivas precoces do câncer. Agora ela vai ser encaminhada para a equipe de cirurgiões que irá avaliá-la e veremos os próximos passos”. A outra médica não falou nada. Mas nem precisava. Tem coisas que os olhos falam bem melhor.

Saí do setor de Pediatria e imediatamente liguei para o Marcos. Ele deu um suspiro grande no telefone e sei que ele também estava chorando. Nós dois sabíamos que aquilo era obra de Deus e testemunhar esse tipo de milagre é algo que muda as nossas vidas para sempre. Marcos deixou claro que ele queria muito estar ao meu lado e sabia o quanto tinha sido difícil pra mim ter vivenciado tudo isso sozinha. Ele conseguir antecipar o embarque e viria para São Paulo imediatamente no dia seguinte. Marcos não me avisou, mas assim que confirmou as boas notícias, ligou para o pai biológico de Ana Luiza, que estava em SP, e pediu que ele fosse visitá-la para compartilhar desse excelente resultado. Nós nem ninguém, em sã consciência, iria dar valor a outra coisa, que não fosse comemorar esse resultado.

Pedi para o Marcos avisar as pessoas do twitter porque eu mal conseguia falar ao telefone, quanto mais digitar alguma coisa. E ele anunciou para a multidão de amigos virtuais da pequena, que estavam torcendo muito por notícias boas.

Voltei para o 5º andar com a cara inchada de tanto chorar. Entrei no elevador e a Simone, uma fisioterapeuta amazonense que está estudando no hospital (e as vezes parece um radar, detectando pacientes conterrâneos) viu minha cara e antes que ela pensasse alguma besteira já fui contando as novidades. Recomecei a chorar novamente. Mas era um choro de alívio, de felicidade pura.

Descemos do elevador chorando e coincidentemente minha sogra estava passando em direção a escolinha da pediatria, para pegar uma tesoura sem pontas para Ana Luiza. Quando ela viu as nossas caras de choro, imediatamente começou a chorar também. Mas pra evitar o pânico já fui gritando as boas notícias. Minha sogra chorava e respirava aliviada, dando graças a Deus. Voltamos as duas para o quarto e eu já fui abraçando minha pequena, enchendo ela de beijos e dizendo que papai do céu estava sendo maravilhoso conosco. Ela ficou me olhando e eu, com os olhos cheios de lágrimas dizia que, especialmente naquele dia, a gente só agradeceria muito ao papai do céu. De todo nosso coração.

Ana Luiza me olhou muito séria e disse: “Tá bom mamãe, chega de choro e vai logo buscar minha tesoura, que a vovó não trouxe, né vó?!” Caímos na gargalhada e eu respirava aliviada, me acalmando da notícia maravilhosa. Enquanto Ana Luiza, parecia já saber do resultado...

Liguei para meus pais em Boa Vista e minha mãe ficou engasgada no telefone. Não conseguia nem falar direito. Imaginei a cara de choro da vovó e a vontade grande que ela deveria estar sentindo em estar conosco. Liguei também para o pai biológico dela dando as boas notícias e ele disse que passaria para visitá-la.

Um casal de amigos muito especiais, o Simão e a Rita, tinham me pedido para avisá-los sobre os resultados dos exames. Eles tem um carinho muito grande pela minha pequena e o Simão, meu ex-chefe, conhecia toda a minha história. Assim que me formei e, precisando trabalhar para ter condições de sustentar Ana Luiza e finalmente, deixar de ser tão dependente dos meus pais, foi ele quem me recebeu na empresa e me deu forças em vários momentos. Um grande amigo. Uma família mais do que especial.

E a tarde inteira fomos tomados por um sentimento maravilhoso de gratidão. Todos que ligavam ou mandavam mensagens, ainda tinham dúvidas e perguntavam quais seriam os próximos passos. A grande torcida de Ana Luiza tinha todos os motivos para festejar e principalmente agradecer.

A Cínthya e a Gracélia, mães de filhos amazonenses em tratamento no hospital, respectivamente Beatriz e João Vitor, vieram me abraçar e comemorar comigo. Elas tinham presenciado meu desespero nos dois últimos dias e mais do que ninguém, tinham a exata dimensão da minha alegria naquele momento.

Meus sogros foram até o apartamento organizar algumas coisas e comunicar à família e aos amigos que estiveram orando por ela, as excelentes notícias do dia. Já no final da tarde, o pai biológico de Ana Luiza chegou ao hospital e ficou por alguns momentos com ela. Enquanto eles brincavam, aproveitei para tentar comentar a notícia com os amigos na internet e esclarecer as dúvidas sobre os próximos passos, já mais calma diante da notícia.

O pai biológico, após alguns minutos, me informou que aquele documento fornecido anteriormente, não serviria para justificar sua ausência e que ele precisava de um laudo assinado por um médico. Eu não estava com a menor vontade de falar sobre aquilo. Mas nada, nem ninguém tirariam aquela alegria contagiante que eu estava sentindo. Eu apenas repeti, mais uma vez, que cederia uma cópia do documento que eu havia recebido e que ele poderia solicitar do hospital, declarações de comparecimento de todos os dias em que esteve no hospital, mas ele continuava dizendo que aquilo não era o suficiente e que procuraria a advogada do hospital.

Eu não queria confusão, mas não poderia, jamais, fornecer um documento que poderia ser usado para prejudicar o processo judicial que infelizmente estávamos metidos. E se o pai biológico de Ana Luiza estava infinitamente mais interessado em um documento para justificar sua ausência no trabalho, aquilo era problema dele, não meu. Meu interesse, naquele momento, era outro.

E ele foi até o escritório da advogada, que mais uma vez repetiu que não tinha permissão para fornecer nenhum outro documento, somente aquele que ela já fornecera. O pai biológico de Ana Luiza, ficou, mais uma vez, insatisfeito. Mas felizmente resolveu não insistir. Tentei argumentar e falei abertamente dos meus receios e pedi apenas, compreensão. Ele permaneceu com ela por mais alguns minutos e foi embora.

Naquela noite, antes de dormir, apenas agradeci muito. Muito mesmo. Deus estava sendo muito carinhoso em nos dar um presente daqueles. No dia seguinte, Marcos chegou cedo e veio direto do aeroporto para o hospital. Beijou e abraçou muito a pequena. Saímos do hospital e Ana Luiza era só alegria!! Dormiu todas as noites com o papai e só queria saber dele. Eu, logicamente, fiquei esquecida no canto. Mas eu precisava descansar. Os dois últimos dias tinham sido muito cansativos e só de olhar a felicidade dela era suficiente pra mim. E enquanto eu descansava, não me cansava de agradecer. Agradecer muito não era suficiente.

Mais dias em casa

Ana Luiza estava ótima, mas dentro de 5 dias nós voltaríamos ao hospital para mais uma aplicação de quimioterapia, portanto esse era o tempo que nos restava para nos divertirmos. Ela estava com as defesas dentro de certa “normalidade”, estava se alimentando bem e decidimos ir até o litoral, para que ela visse o mar. Somente olhar mesmo, literalmente. Fomos numa segunda-feira e a praia de Itanhaém estava completamente vazia.

Os avós paternos do Marcos haviam morado lá e fomos visitar a casa onde ele costumava passar férias. O passeio foi maravilhoso. Ela brincou muito, deu muita gargalhada e se divertiu demais. Compramos uma bola de praia e ficamos jogando, Marcos, eu, Ana Luiza e os avós.

Na volta para casa, Ana Luiza caiu no sono. Chegamos em casa após um dia muito gostoso em família. Poucos dias depois, vovô Calmon e vovó Eliane voltariam para Belo Horizonte, mas logo passariam o bastão para vovó Aldenora, que ansiosa, aguardava o reencontro com a pequenina. Ela chegou exatamente no dia em que voltávamos para o hospital, para mais uma aplicação de quimioterapia.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Segunda internação (20/10/2010 a 10/11/2010)

Apesar da alegria nervosa, minha pequenina estava realmente bem. O cabelo estava bem ralo, mas já tinha parado de cair. Os fiapos que restavam eram cuidadosamente bem penteados pela própria Ana Luiza, que muito vaidosa, toda hora passava a escova e o reparador de pontas nos poucos fios. Antes de sair de casa, ela me chamou no banheiro e disse que queria cortar uma “ponta meio torta” que tinha no cabelo. Eu ri, mas peguei a tesoura e acertei o fiapo torto. Ela ficou bem satisfeita.

A presença dos tios Alex e Aline foram fundamentais nessa internação. Já no hospital recebemos visitas de vários amigos que ainda custavam a acreditar no que estava acontecendo. Se continuava sendo difícil pra mim, que estava vivendo o problema, o que dizer de pessoas que só conseguiam lembrar dela esbanjando saúde?!

Ela começou a aplicação do segundo ciclo de quimioterapia exatamente no dia do meu aniversário. Eu sequer lembrava do meu aniversário e todos aqui em casa também esqueceram. Fui lembrada pela internet, quando abri meu e-mail e vi aquelas mensagens de lojas me desejando feliz aniversário. O único presente que eu poderia receber, seria a saúde restabelecida da minha filha, mas isso ainda levaria tempo. Me restava pedir serenidade para continuar e força para minha filha suportar o que ainda viria pela frente.

Ana Luiza parecia estar reagindo bem, apesar dos vômitos e náuseas absurdos. Logo no primeiro dia de quimioterapia ela fez o tio Alex sair correndo do hospital para buscar picanha com arroz. Pedido atendido. Mas infelizmente a comida não ficava na barriga. A tia Aline só faltou plantar bananeira pra tentar alegrá-la. Depois de muito insistir, a tia conseguiu convencê-la a ir até a escolinha pediátrica para prestigiar o voluntário que, toda sexta-feira, aparecia para animar a garotada, tocando violão.

Ana Luiza tentou se animar: tocou pandeiro, uns chocalhos e tentava acompanhar as músicas lendo as letras que as professoras entregavam. Eu ficava lendo junto, tentando cantar. Algumas músicas que o cara resolveu tocar pareciam ter sido escolhidas para me dar um soco no estômago. Pelo menos 4 vezes tive que sair da sala para chorar... E chorei muito. Era insuportável ouvir “Como uma onda no mar” nessas circunstâncias. E cantar “Epitáfio” era absurdo demais.

Minha pequena estava bem fragilizada por causa da quimioterapia. Mesmo com a tia Aline fazendo palhaçadas, ela mal esboçava um sorriso. Vomitou muito e o semblante da criança que deu entrada no hospital foi embora rápido. Isso foi desesperador para os tios. Os dois desabaram no corredor do hospital. Choraram muito. Meu irmão principalmente.

Quando Ana Luiza nasceu, era o tio Alex, meu irmão, o único homem que estava na maternidade comigo. Assim que a pediatra saiu da sala de cirurgia com a pequena Ana Luiza nos braços, ela se dirigiu ao meu irmão, achando que ele fosse o pai. Entregou Ana Luiza pra ele, que chorando muito segurou ela no colo. Depois de passado o primeiro instante, ele virou “paparazzi” e tirou mais de 30 fotos da Ana Luiza, todas elas quase sequenciais: tomando o primeiro banho, colocando a roupinha, etc... As fotos ficaram horríveis, mas o importante é a história por trás delas. E só quem estava lá no nascimento dela, sabe explicar como foi emocionante. O tio Alex sempre foi apaixonado pela Ana Luiza e estava sendo desesperador pra ele, vê-la daquele jeito. Ele se sentia impotente, mas aquela sensação era a de todos nós. Nos restava ter muita fé e calma.

No dia em que Ana Luiza recebeu alta, tia Andréa e tio Marcelo, irmão do Marcos, chegaram de Belo Horizonte. Deu pra notar o alívio estampado no rosto deles assim que bateram o olho nela. Apesar de ter feito quimioterapia no dia anterior, Ana Luiza estava ótima: A nossa Ana Luiza de sempre. Em face disso, e com aprovação dos médicos, resolvemos ir ao Play Center. Estávamos todos muito animados, mas “mal acostumados”, achando que ela teria as mesmas reações da primeira quimio. Infelizmente, a pequena não suportou nem 2hs no Play Center. Foi apenas em 2 brinquedos infantis (Carrossel e Trenzinho) e logo se sentiu muito fraca e nauseada. Voltamos pra casa rápido e ela pode descansar tranquila.

No domingo, aproveitando que a imunidade ainda estava dentro de certa “normalidade” e ela estava se sentindo melhor, fomos com os tios de BH, ao Parque Ibirapuera. Ela tinha adorado o parque desde a primeira vez. Ficou encantada com tanto espaço pra brincar, com tantos cachorros diferentes, as bicicletas, os brinquedos, as pessoas... Novamente, não pudemos andar de bicicleta, desta vez por causa do horário, pois a gente ainda tinha que levar os tios para o Aeroporto. Ana Luiza não ficou tão triste, parecia estar mais resignada com sua situação, mas ficou a promessa que da próxima vez, passearíamos de bicicleta.

Promessa cumprida logo no dia seguinte: Com tio Alex e tia Aline, fomos novamente ao Ibirapuera. Desta vez alugamos bicicletas e Ana Luiza, indo na cadeirinha da bicicleta do Marcos, gritou bem alto: “Eu estou muuuuuitoooo feliiiiz!”. Era a primeira vez, em pouco mais de um mês, que minha filha demonstrava uma felicidade tão grande.

Ela realmente se divertiu muito. Foi tão bom vê-la feliz, rindo, curtindo o passeio e dando gargalhadas das corridas de bicicleta... perdi as contas de quantas vezes enxuguei as lágrimas enquanto pedalava. Olhava pro céu, pro lago, pra flores e tudo era motivo pra eu chorar de alegria. Deus estava nos dando uma linda oportunidade de curtir nossa filha, exatamente como antes. Como se ela não tivesse doença nenhuma.

Marcos e eu estávamos tentando dar um jeito de ir até o Aeroporto de Guarulhos, para nos despedirmos dos nossos irmãos postiços, Felipe e Frida. Eles estavam indo estudar na Espanha por vários anos e nós havíamos acompanhado todo o processo de seleção desde o início. Ficamos muito felizes pela vitória deles, mas definitivamente, esta não era a despedida que nós quatro imaginávamos. Mas dar um abraço apertado no tio Felipe e na tia Frida significaria muito para todos nós, principalmente para a pequena, que sempre fora alucinada pelo pais do Luck, o cachorrinho mais doido do planeta.

Tia Frida e tio Felipe estiveram conosco nos últimos 3 anos e eram muito mais que vizinhos. Quantos churrascos, sessões de cinema em casa, conversas na janela... quantos idas a Cachaçaria do Dedé, ao Empório Roma, ao restaurante da Bia... quantas risadas altas e sustos no condomínio... E durante os momentos iniciais de todo esse pesadelo, eles estiveram conosco o tempo todo. A gente precisava se despedir. Graças a Deus, conseguimos ir ao Aeroporto. Depois de muitas risadas e abraços apertados, o choro foi inevitável. Era uma mistura louca de sentimentos. Mas o mais importante deles estava lá: o amor fraterno.

Depois que todos os tios foram embora e apesar de todos os cuidados possíveis e inimagináveis que minha mãe e eu estávamos tendo com Ana Luiza (máscaras descartáveis, talheres e pratos separados, super higienização, etc) o inevitável aconteceu: Mucosite.

A mucosite é muito comum em pacientes que fazem quimioterapia. Como o tratamento destrói as células que estão se multiplicando, sejam saudáveis ou não, a mucosa é a primeira a sentir estes efeitos, pois ela se renova todos os dias. E em virtude da baixa imunidade, o corpo fica suscetível a qualquer microrganismo.

Ela estava com dificuldade para engolir a saliva, dizia que não conseguia engolir nada. Fazia um esforço absurdo para tomar um copo de leite ou água. Fiquei sentada ao lado dela na sala assistindo TV e monitorando a temperatura o tempo todo. Ela estava bem e apesar de não conseguir comer, ela estava bem disposta e rindo muito assistindo televisão.

Quando resolvi checar a temperatura pela milésima vez, o termômetro marcou 38ºC. Me deu um gelo na barriga. Saí correndo, chamando o Marcos e arrumando uma mochila pra ir logo para o hospital. Ana Luiza, quase chorando disse: “Não, mamãe! Eu não tô com febre! Coloca o termômetro de novo, acho que ele mediu errado... eu não quero ir pro hospital...”

Chegando na emergência, ela fez todos os exames rotineiros (hemograma, raios-X, hemocultura, exame de urina). Foi medicada e a febre foi embora em poucos minutos. Assim que a febre e a dor diminuíram (por causa dos efeitos do medicamento) Ana Luiza conseguiu comer um sanduíche com chocolate gelado e logo que a médica apareceu para avaliá-la, Ana Luiza foi enfática: “Já melhorei, tia!! Já posso ir pra casa, né?! Eu prometo que vou comer direito!” A médica riu e disse que infelizmente ela tinha que permanecer internada. Ela ficou triste, mas aceitou. Subimos para o apartamento e começou o primeiro tormento com os reais efeitos colaterais da quimioterapia.

Durante os dias seguintes, ela não conseguia comer nada. Chorava desesperada por causa da dor na boca e na garganta. Tomou um analgésico potente para aliviar a dor (Tramadol), mas logo que acabavam os efeitos ela voltava a chorar. Ela sentia fome e quando tentava comer alguma coisa, gritava de dor. Aquilo era uma facada no meu coração. Mas eu não podia perder o chão, pois ela precisava de mim... nem minha mãe, nem minha sogra conseguiam se controlar: Caíam no choro mesmo! Eu precisava me manter firme, cuidando dela, forçando-a tomar banho, forçando-a tomar os remédios, forçando-a a fazer a higiene oral.

Meus sogros foram para Belo Horizonte de coração partido. A vovó Eliane se despediu da Ana Luiza aos prantos, pois não conseguia controlar a angústia ao vê-la chorando tanto. Marcos também iria embora nesse mesmo dia. Eu queria tanto que ele ficasse, mas infelizmente alguém tinha que trabalhar. Quer dizer, tentar trabalhar.

Marcos voltou pra Manaus, mas deixou o coração aqui. Só de pensar em ficar sozinha aqui em SP, me dava uma angústia tão grande. Minha mãe ficou comigo, mas a presença do Marcos me dava uma segurança inexplicável. Queria tanto que ele ficasse, mas nessas horas eu tinha que pensar com a cabeça e não com o coração. Ele PRECISAVA ir. Saímos de Manaus largando tudo pra trás. Ele tinha inúmeras coisas para resolver e o mais importante: tentar voltar para São Paulo o mais rápido possível.

Ana Luiza ficou muito triste com a ida do “Puí”, mas ficou muito mais apavorada e arrasada com os efeitos da quimioterapia. Ela não conseguia dormir direito, rangia os dentes e babava muito, pois não conseguia engolir a saliva. Durante uma das madrugadas no hospital, ela acordou assustada e chorou muito. Gritando, ela dizia que aquilo era muito injusto, que papai do céu não gostava dela... Tentei abraçar minha filha e ela me empurrava dizendo: “Sai mãe! Não me abraça! Não adianta nada você ficar me abraçando... Papai do céu não gosta de mim... isso é um castigo muito grande! Eu sou apenas uma criança. Eu não fiz nada de ruim, eu sempre fui boazinha, isso é uma injustiça!! Já pedi tanto pra ficar boa e papai do céu não me ouve!!”

Ela ficou alguns minutos chorando e gritando muito. Ela disse que preferia morrer, do que fazer a quimioterapia. Eu apenas ouvia calada. Minha mãe, aos prantos e muito assustada, não conseguiu ficar perto. No fim, Ana Luiza deixou que eu a abraçasse. Segurei ela no colo e implorei que Deus tivesse misericórdia da minha pequena... imediatamente ela caiu no sono. Eu não chorei, apenas clamei por força. Segurei o desespero e fiz apenas o que eu podia fazer: Pedir força e misericórdia de Deus e dar todo o meu amor através daquele abraço.

No dia seguinte, ela acordou muito melhor. Acordou bem humorada, alegre e fazendo graça. Já minha mãe acordou totalmente arrasada. Não conseguia parar de chorar. Achava que Ana Luiza precisava ser atendida por um psiquiatra, que ela era muito criança pra falar daquele jeito, que não era normal, que isso, que aquilo...

Eu estava assustada também, mas na minha opinião, o episódio da noite anterior me pareceu mais uma espécie de desabafo, do que depressão ou qualquer outra coisa. A vida da minha pequena mudou, literalmente, do dia pra noite. Há pouco mais de 1 mês, ela vivia uma vida normal. Fazia balé, capoeira, estudava para as provas, ia para os aniversários dos colegas, ia para o cinema com as amiguinhas, passeava no shopping conosco, andava de bicicleta, brincava na casa dos vizinhos, assistia televisão, jogava videogame...

Me pareceu que Ana Luiza estava sufocada, agoniada e se sentindo numa prisão. Aquilo tinha sido um desabafo. Pra tranquilizar minha mãe, falei com a psicóloga e ela confirmou: Aquilo era normal e fazia parte da reação ao tratamento. Disse que Ana Luiza era muito inteligente e tinha um vocabulário muito rico, mas que a gente não se preocupasse, pois ela estava bem, mas eventualmente poderia ter alguns episódios desses.

Enfim, como a pequena não se alimentava direito, a série vermelha do sangue baixou e ela ficou muito anêmica. Ela precisava receber transfusão sanguínea. Eu fiquei assustada, Ana Luiza mais ainda.

A enfermeira entrou no quarto e nos comunicou que Ana Luiza precisaria tomar sangue. Com os olhos arregalados a pequena ficou me olhando assustada. Assim que a enfermeira saiu do quarto ela perguntou: “Eu vou tomar sangue?!! Engolir o sangue?!!” Rindo, eu expliquei que não. Que o sangue seria injetado na veia. Aí sim ela chorou... acho que ela preferia tomar o sangue pela boca, do que tomar as terríveis picadas, o verdadeiro pânico da Ana Luiza.

O drama de sempre: muito choro, desespero e tristeza até na cara das enfermeiras, mas graças a Deus, deu tudo certo. O problema do acesso periférico, é que Ana Luiza tem as veias “muito fininhas e dançantes”, ou seja, ruins! As danadas se escondem e as enfermeiras tem que ficar “procurando”. Um verdadeiro horror. Mas finalmente conseguiram uma boa veia e ficamos aguardando a temperatura do corpo dela ficar abaixo dos 36,5ºC, para poder receber a bolsa de sangue, coisa que só aconteceu de madrugada e felizmente ela não viu nada!

Imediatamente após a transfusão, os parâmetros melhoraram significativamente. A febre persistia, sempre no mesmo horário. Aquilo estava me apavorando. A cada 30 minutos eu checava a temperatura dela e sempre no início da noite a febre voltava.

Finalmente os médicos informaram que a cultura do sangue e da urina, não evidenciaram nenhum crescimento de bactérias e os médicos descartaram infecções. Entretanto somente a liberariam para ir pra casa, quando a febre cedesse e as defesas aumentassem. O quadro era de leucopenia febril (febre devido a baixa acentuada da imunidade) e manter ela no hospital era muito mais seguro do que ficar em casa, pois estava sendo monitorada, hidratada e medicada. E assim foi feito.

A mucosa melhorou muito, com os inúmeros bochechos e cuidados que a estomatologista havia recomendado (hidróxido de alumínio, enxaguante bucal sem álcool, haste de higiene oral, nistatina por 3 minutos e uma cápsula de vitamina E, após 20 minutos da limpeza). Logo ela começou a se alimentar melhor.

Após 48h sem febre e com os exames de sangue mostrando aumento da imunidade, ela recebeu alta. Fomos pra casa, mas eu ainda estava muito assustada. Minha vontade era colocar Ana Luiza numa bolha pra que nunca mais ele tivesse que ficar internada. Pura maluquice, afinal era apenas uma reação naturalmente esperada da quimioterapia. Mesmo assim redobrei os cuidados com a boca e ela passou a se alimentar melhor.

Recebemos várias visitas e o tio Alencar e a tia Nalva, dois grande amigos, vieram passar o dia conosco e fomos passear no parque da Aclimação. Foi um passeio rápido, só pra ela sair de casa, mas valeu muito a pena, pois ela sempre se divertia muito com eles.

Ela estava super bem. E numa das noites, antes de dormir ela disse: “Mãe, já estou boa. Acho que a gente já pode voltar pra Manaus.” Expliquei que ainda faltava muito, mas que ela estava ficando boa sim e que estava de parabéns por ser tão forte.

Ela me encheu de perguntas. Pela primeira vez conversou comigo sobre a doença (só conversava com o Marcos). Perguntou o que era célula, como a quimioterapia matava o câncer, como ela tinha contraído a doença...

Expliquei tudo de forma bem objetiva, mas ainda me doía muito ter que falar sobre isso com ela. Todavia era necessário, principalmente por que ela precisava saber que teríamos que voltar ao hospital novamente para continuar o tratamento. Após poucos dias em casa, voltamos a arrumar as malas e nos preparamos para mais uma internação. Desta vez ela estava mais consciente da necessidade da quimioterapia, mas estava mesmo muito feliz porque o papai voltaria de Manaus e assim que ela saísse do hospital ele já estaria em casa nos esperando.