domingo, 1 de abril de 2012

1 a 10 de junho de 2011 - A recidiva

Marcos voltou pra Manaus com diversas coisas de trabalho pra resolver, mas com a certeza de que em breve, nós três embarcaríamos juntos no Aeroporto de Guarulhos, rumo a Manaus. Na sua próxima vinda a SP, provavelmente já seria o grandioso momento de voltarmos todos juntos pra casa. Felicidade era pouco para explicar o que passava em nossos corações. Enquanto isso, a “folgada” aqui continuava por mais alguns dias, cuidando do tesouro da família, que em poucos dias poderia voltar pra casa.

Faltavam apenas 20 dias para o fim da radioterapia do tórax. Somente 20 dias era o que faltava para o fim de um tratamento que deveria ter sido de pelo menos 2 anos, na melhor das hipóteses.

Exatamente no dia 20 de junho de 2011, após 09 meses do diagnóstico, Ana Luiza concluiria o último procedimento terapêutico e teria conseguido o feito de ter completado todo o tratamento muito antes do imaginado e com remissão completa da doença!

O tumor de 5cm na base do crânio, os diversos tumores espalhados pelos dois pulmões, as lesões cancerígenas em duas vértebras da coluna dorsal, o tumor no osso da perna e a infiltração do câncer na medula óssea. Tudo isso havia desaparecido em 9 meses. Milagres que testemunhei na companhia de dezenas, talvez centenas de pessoas que nos acompanharam.

No dia 20 de setembro de 2010 ela fez a ressonância que diagnosticou, precisamente, o rabdomiossarcoma e, 09 meses depois ela estaria livre dele. Difícil acreditar. Mas eu, Carolina, aos 28 anos, havia presenciado dezenas de milagres nestes últimos meses. O maior deles, sem dúvida, era o fim do tratamento, com Ana Luiza sem nenhuma sequela, sem nenhum rancor e sem nenhum trauma. Uma criança de 7 anos, que enfrentou um tratamento super pesado, doloroso e simplesmente continuou a criança de 7 anos que sempre foi.

Nestes nove meses minha filha nunca queixou-se dos procedimentos, por mais dolorosos que eles fossem. Nunca deixou de ser carinhosa e educada com todos os profissionais, que por força do dever, precisavam submetê-la aos mais terríveis procedimentos.

Cada coleta de sangue, cada injeção de contraste, cada ciclo de quimioterapia, cada sessão de radioterapia, cada internação... em todos os momentos, minha filha, meu orgulho, o amor da minha vida, só demonstrava o quanto ela era especial. Carinhosa com as enfermeiras, com as recepcionistas e com os médicos. Cumprimentava a todos: seguranças, zeladores, atendentes, professoras. Ela gostava do hospital, mesmo tendo passado os piores momentos de sua infância naquele lugar. Nada de mágoa, nada de traumas. Com muita tranquilidade, ela esticava o bracinho pra coletar sangue e apenas dizia para as técnicas de enfermagem: “Eu vou contar até três, tá? Aí você coloca a agulha... Um, dois, três e já!” Ela respirava fundo, segurava a respiração e assim que o sangue aparecia na seringa ela soltava o ar. “Ufa... Nem dói muito. Mas ainda bem que você é fera pra tirar sangue, né tia?” Dizia ela, com um sorriso no rosto.

Ana Luiza entrou e saiu do tratamento sendo a mesma criança de sempre. Com a diferença que tornou-se mais madura, aprendeu novas palavras, novos significados, conheceu novas pessoas. Aos 7 anos, ela mostrou uma maturidade espiritual que envergonha muita gente. A resignação, a confiança e certeza de que tudo ficaria bem.

Ao olhar pra minha pequenina, eu não via somente minha filha única, uma criança extremamente amada pela família e amigos. Eu enxergava uma mocinha vitoriosa, segura e confiante, cuja doença mais temida do mundo, não foi capaz de destruir, apenas de fortalecer.

Mas apesar de presenciar muitos milagres, nunca consegui me sentir completamente tranquila. Por alguns momentos, até pensei que eu não tinha fé. Que deveria apenas aceitar o milagre e pronto. Mas a verdade é que nunca deixei de me preocupar e de estar preparada para enfrentar o pior.

Me lembro que das centenas de e-mails e mensagens que recebi, em diversas delas, me enviavam algum trecho da bíblia. O que mais recebi, é um trecho bastante conhecido: “Tudo posso Naquele que me fortalece”, enviado sempre com o intuito de me encorajar e não perder a fé mesmo diante das piores circunstâncias. Outros enviavam esse mesmo trecho, interpretando que com Deus, podemos tudo, como se fôssemos, apenas pela fé, merecedores de bençãos sem fim.

Mas “tudo”, em minha opinião, significa, literalmente, TUDO. Eu poderia estar feliz com os milagres recebidos, mas eu também teria que estar preparada para enfrentar as dificuldades, caso elas insistissem em surgir. E independente da situação, minha fé deveria ser meu suporte.
Eu estava feliz? Sim. Mas de olhos bem abertos. Eu já estive plenamente feliz há 9 meses atrás e eu, melhor do que muita gente, sei o que é ver a felicidade ruir diante da gente. Eu sei muito bem o que significa colocar um filho lindo, saudável e inteligente para dormir num dia e, 6 dias depois, embarcar em uma UTI aérea, para buscar tratamento para um dos tipos de cânceres infantis mais agressivos que se tem notícia.

Enfim, eu não podia subestimar o “inimigo”. Eu deveria estar agradecida por tantos milagres, mas precisava estar atenta. Minha filha não estava se tratando de uma pneumonia. A doença era um câncer raro, agressivo e avançado, cujo tratamento ainda não está completamente estabelecido.

Apesar do fim do tratamento estar próximo, Ana Luiza só poderia voltar pra Manaus definitivamente, após os exames de imagem (ressonância magnética da coluna e do crânio, tomografia computadorizada do tórax e cintilografia óssea). E estes exames só poderiam ser feitos após 01 mês do último dia de tratamento, portanto, só voltaríamos para Manaus, definitivamente, em julho de 2011.

Com a autorização da médica, agendei o exames de Ana Luiza para o dia 18 de julho, véspera do aniversário dela. Assim, poderíamos comemorar o aniversário dela em São Paulo e logo depois dos resultados dos exames, finalmente voltaríamos pra casa.

Este período entre a última sessão de radioterapia e os exames finais, nós programávamos passar em Belo Horizonte, com os familiares do Marcos. Todos lá estavam muitos ansiosos, aguardando a chegada da pequena. Vovô Calmon, especialmente, aguardava a pequena no sítio em Lagoa Santa.

Há meses Ana Luiza falava em nadar na “piscininha” de água quente do sítio. Ela adorava a “piscininha”, um ofurô delicioso que o vovô mandou construir ao lado da “piscina grande”.

Em uma das consultas com a Dra. Cecília, perguntamos se ela poderia entrar na água depois do tratamento, pois o vovô tinha prometido trocar a água, lavar bem o ofurô e deixar de uso exclusivo para ela. Nestas condições, Dra. Cecília autorizou o banho de piscina e a pequena, gritando de felicidade, saiu correndo do consultório antes mesmo da consulta terminar, gritando: “Vovô, ela deixou!!! Vou poder entrar na piscininha!”

Enquanto eu explodia de alegria por ter chegado ao fim do tratamento, pelas vitórias alcançadas diante dessa doença terrível, minha pequena estava feliz porque poderia tomar banho de piscina. O quão profundo é isso? Ana Luiza, mais uma vez, nos mostrava o que era felicidade. Felicidade era um banho de piscina na casa do vovô.

Com o fim da radioterapia e o mês inteiro de espera até a realização dos exames de imagem, teríamos bastante tempo para passear com ela, organizar uma festinha linda pra comemorar o seu aniversário e “desmontar o acampamento” em São Paulo.

Meus pais chegaram de Boa Vista e meus sogros voltaram para Belo Horizonte. Estas 4 pessoas nunca me deixaram sozinhas. Sempre participaram de tudo e sempre se colocavam a disposição para tudo. Era maravilhoso poder contar com alguém, principalmente quando esse “alguém” se preocupava genuinamente conosco. Meus pais e meus sogros foram fundamentais nesse processo, assim como a dezena de amigos e familiares que estiveram ao meu lado.

Agendei todos os exames, deixei tudo acertado e assim, poderíamos aproveitar o mês de junho inteiro para organizar nossas coisas e enviá-las para Manaus, além é claro, de preparar uma linda festa de aniversário para Ana Luiza.

Todo ano, ela não tinha dúvidas sobre o tema que escolheria para o aniversário. Se houvesse dúvida, era entre um tema e outro. Mas até aquela data, Ana Luiza simplesmente não sabia o que escolher. Sugeri diversos temas, mas ela estava completamente desinteressada. Diariamente eu insistia pra saber o que ela gostaria, mas ela sempre se mostrava indiferente ou incerta sobre a festa. Ela estava feliz, mas não parecia empolgada com o aniversário.

Certo dia, Ana Luiza decidiu que o tema do seu aniversário seria um jardim encantado. Achei a ideia ótima. Ela sempre gostou de flores e estando em SP, poderíamos usar toda a criatividade para decorar uma festa linda.

Várias pessoas colocaram suas casas a disposição para comemorarmos o aniversário dela, mas por escolha da Ana Luiza, comemoraríamos na Pizzaria que ficava ao lado do apartamento onde estávamos hospedadas. Os donos, Arthur e Rosana, desde nossa chegada em SP, nos receberam com muito carinho e Ana Luiza, especialmente, conquistou o coração desse casal.

Decidido o tema e o local da festa, eu esperaria o tratamento terminar e começaria a organizar tudo. Não seria apenas um aniversário de 8 anos, mas uma comemoração ao sucesso do tratamento e uma linda despedida de agradecimento aos amigos que fizemos em SP, afinal já estaríamos autorizados a voltar pra Manaus.

Ana Luiza estava bem. Eventualmente queixava-se de dor de cabeça e acordava nauseada. Eu conversava com os médicos e todos eram unânimes em concordar que eram efeitos da radioterapia. Aqueles sintomas incomodavam a pequena, mas ela sempre tirava por menos: “Não é nada, mãe! É só um enjôo e você fica toda preocupada! Credo!” Ela realmente detestava drama. Não queria deixar ninguém preocupado e sempre minimizava tudo. Meu coração não estava tranquilo, mas ela realmente parecia tão bem.

Ana Luiza vinha se alimentando mal. Comendo pouco e sempre acordando muito enjoada. No dia 06 de junho, ela acordou e não conseguiu comer nada. Nem no café da manhã, nem no almoço. Tudo que ela tentava comer, vomitava.

Fomos para o hospital para mais uma sessão de radioterapia e alguns minutos antes de entrar na sala de radioterapia, ela teve um mal estar. Fiquei preocupada e liguei pro Marcos. Desde o dia em que ele voltou pra Manaus, vinha se preparando para uma viagem a trabalho para Argentina. Ele estava tranquilo quanto a viagem, pois Ana Luiza estava bem. Seria uma viagem curta e logo ele estaria de volta.

Assim que comentei sobre as náuseas que ela vinha tendo ele me tranquilizou e disse que acreditava que eram somente efeitos da radiação, exatamente como os médicos disseram. Ele aproveitou e disse que a viagem para Argentina estava confirmada, apesar do vulcão chileno que havia entrado em atividade e estava causando o cancelamento de alguns voos.

Meu coração estava apertado. Sabe-se lá porquê.

Na saída do hospital, encontrei com um casal e seu filho de 2 anos, vindos do interior do Amazonas para tratamento em São Paulo. O pequeno Alan, tinha uma suspeita de rabdomiossarcoma, o mesmo câncer de Ana Luiza e seus pais vivenciavam aquele momento inicial da confirmação do diagnóstico e início do tratamento. Estavam hospedados na Casa Hope e uma semana antes, meu pai e eu tínhamos ido até lá, levar algumas roupas de frio pra eles.

Um casal humilde, de coração enorme e bastante simpático. Os pais do Alan, vindos de uma cidade chamada Manacapuru, do interior do Amazonas, tiveram uma peregrinação completamente diferente da nossa.

Ana Luiza, Marcos e eu, estávamos na UTI do hospital A C Camargo, após 6 dias do primeiro sintoma de Ana Luiza. Estávamos hospedados em um apartamento confortável e a todo momento algum familiar vinha nos visitar. O Alan só conseguiu chegar aqui depois de meses de espera. Com muita dificuldade e com a ajuda de outras pessoas, eles conseguiram vaga em uma casa de apoio e contavam somente com uma ajuda de custo fornecida pelo governo, de pouco mais de 700 reais. Ajuda esta, dada aos cidadãos que precisavam sair de seu domicílio em busca de tratamento. Os parentes não tinham a menor condição de acompanhá-los ou ajudá-los como eu vinha sendo ajudada até então.

Isso era injusto. Os dois são crianças, amadas por seus pais e familiares e ambos tinham uma suspeita diagnóstica terrível. Diferente de Ana Luiza, Alan não tinha roupas de frio guardadas para quando viajasse para um lugar de temperatura mais baixa, mas como a minha filha, ele estava disposto a encarar o tratamento, sempre sorridente e esperto. Os pais do Alan também não estavam preparados para enfrentar os meses mais frios de São Paulo, mas assim como Marcos e eu, eles estavam apavorados diante da incerteza do diagnóstico e do medo de que algo ruim acontecesse ao filho único.

Apesar de sermos pessoas diferentes, vindas de famílias e lares diferentes, o câncer colocou todos nós, “no mesmo balaio”. Estávamos todos enfrentando o mesmo problema, com os mesmos medos e com as mesmas armas. A vitória ou a derrota, era algo incerto, mas a luta era o que nos igualava. Ou pelo menos deveria ser.

Quantas crianças, neste exato momento, estão tendo as chances que Ana Luiza e Alan tiveram? Quantas estão tendo as mesmas condições de tratamento que a Giulia, a Bia, o João Vitor ou o Rafael tiveram? Todos estes amazonenses que tive o privilégio de conhecer, tiveram acesso ao melhor tratamento possível em 2011. Mas muito longe de suas casas. Enfrentando a distância, as diferenças e as dificuldades inerentes a um tratamento longo, difícil, doloroso e, ainda por cima, distante de suas famílias e amigos.

Desde o início, assim que tomamos conhecimento da história deles através dos médicos do A C Camargo, tentamos ajudar de alguma forma. Passar pelo problema do câncer em si, já é terrível. Acumular problemas e dificuldades paralelos ao câncer, torna tudo ainda mais desesperador.

Ana Luiza e Alan brincavam na entrada do hospital enquanto eu conversava com os pais dele. Que família linda. Pena que nos conhecemos através da doença de nossos filhos. Um jovem casal, sorridente e confiante. E com muita fé e esperança de que o filho ficaria bem. Isso é o fundamental.

Ana Luiza e eu saímos do hospital, pegamos um táxi e fomos ao shopping. Fomos somente nós duas. Um passeio que sempre adorei. Somente eu e ela. Conversar, rir, abraçar, ensinar, aprender. E acima de tudo, ter essa filha-amiga sempre ao meu lado, era tão bom.

Ana Luiza não estava bem. Estava nauseada e a todo momento sentia vontade de vomitar. Mas mesmo assim ela quis passear. Jantamos exatamente o que ela queria: asinhas de frango crocantes, com batata e suco de laranja. Mal ela começou a comer, ficou nauseada e correu para o lavabo. Não deu tempo de chagar ao banheiro. Ela vomitou tudo. Os garçons olharam estranho pra gente. Em dúvidas, ficaram chateados com a sujeirada que fizemos no lavado. Mas eu não pude fazer melhor. “Pelo menos ela não sujou o salão do restaurante!” Pensei eu.

Voltamos para a mesa. Ana Luiza tirou o gorro e o cachecol que estava usando. Respirou fundo e com uma carinha de quem estava chateada consigo mesma, disse: “Posso pedir outro frango? Quero tentar comer de novo, mamãe!”

O garçom veio nos atender e vendo a carequinha dela, parece ter mudado na mesma hora a atitude conosco. Ficou sem graça, perguntou se estava tudo bem, se precisávamos de algo. Ana Luiza, com o seu jeito resolvido, apenas disse: “Sim, precisamos de algo: de outro frango crocante porque o primeiro eu vomitei todo. É por causa da radioterapia”

Eu não sei. Naquele exato momento me deu uma vontade de chorar. Um aperto no coração. Ela falava com tanta naturalidade e encarava tudo com tanta tranquilidade, que me deixava envergonhada. Quando o frango chegou e ela voltou a comer, eu tentei disfarçar minhas lágrimas. Ana Luiza era dura na queda. Se me visse chorando, me daria uma bronca. Então disfarcei.

Comecei a mexer na bolsa e enxuguei as lágrimas que insistiam em querer cair. Eu queria tanto que ela ficasse boa. Não aguentava mais vê-la sofrendo aqueles efeitos. Aquilo me destruía, apesar de toda a força que ela tinha. Eu só queria voltar pra casa e retomar nossa vida. Ela estava linda, com os cabelinhos voltando a nascer, os cílios e sobrancelhas bem fartos como sempre foram. E eu só queria que ela ficasse livre desse tormento que é o câncer e o tratamento disponível para tentar se livrar dele.

Ela terminou de comer, nada de vômitos ou indisposição. Fomos ao cinema e ela quis pipoca e suco de uva. Comeu mais um pouco e a comida ficou na barriga. Àquela altura, tudo que ela quisesse (e conseguisse) comer, era lucro.

Saímos tarde do cinema. Liguei para os meus pais avisando que já estávamos no táxi de volta pra casa. Liguei pro Marcos e ele se preparava para ir o aeroporto. Até então o voo estava confirmado e ele faria o embarque para Buenos Aires, com conexão em Guarulhos-SP.

Chegamos em casa e Ana Luiza estava bem. Contou sobre o filme para a vovó, disse pro vovô que comeu bem, fez as compressas com chá de camomila na região irradiada do tórax e passou a “baba de planta” (unguento/gel a base de Aloe Vera, que Ana Luiza detestava usar, porque segundo ela, parecia saliva).

Coloquei Ana Luiza para dormir e fiquei com o pensamento longe. Uma inquietação sem fim. Não conseguia dormir de jeito nenhum e tarde da noite, Marcos me liga pra dizer que não tinha embarcado, pois os voos haviam sido cancelados em virtude do vulcão no Chile. Ele, provavelmente, conseguiria embarcar no dia seguinte, mas me manteria informada.

Depois de algumas horas de insônia, algo incomum pois eu realmente dormia bem, finalmente caí no sono. Ana Luiza havia pedido pra dormir com minha mãe e eu acabei dormindo no escritório.

No dia seguinte todos nós acordamos e Ana Luiza continuava dormindo. Marcos ligou, disse que estava no trabalho, esperando uma definição da companhia aérea. Fui tomar banho e assim que saí do banheiro enrolada na toalha, Ana Luiza acordou gritando. Minha mãe correu pro quarto e Ana Luiza, sem conseguir falar direito, chorava muito, dizendo coisas incompreensíveis.

Quando cheguei no quarto, Ana Luiza estava no banheiro da suíte vomitando e gritando de dor. Minha mãe chorando desesperada, segurava e apoiava a cabeça dela com a mão.

Ana Luiza estava sentindo muita dor na cabeça. Gritava segurando a cabeça e dizia que teve um sonho terrível, que uma pessoa dava um tiro na cabeça dela e ela morria. Minha mãe soluçava e mal conseguia falar.

Tirei minha mãe do banheiro e pedi que ela fosse até a cozinha pegar os remédios da Ana Luiza e tentasse se acalmar. Segurei minha pequena no colo que, muito fraca, só chorava e dizia que estava com muita dor de cabeça e sono.
Coloquei ela no colo e a carreguei até o outro quarto, deitei-a na cama e dei os remédios de náusea e dor. Ela vomitou tudo de novo e, sonolenta, voltou a dormir. Eu me vesti apressadamente, liguei para o Marcos, contei o que aconteceu e ele disse pra irmos para o hospital.

Ana Luiza não acordava de jeito nenhum. Eu sentei ao lado dela e fiz a única coisa que podia: conversei com Deus.

Como toda oração que nós duas fazíamos juntas, primeiramente eu agradeci a Deus, agradeci pela chance de passar mais um dia ao lado dela, pelo alimento que nunca nos faltou e por sempre estarmos cercadas de pessoas que nos amavam. Depois de agradecer, pedi muito a Deus que Ele protegesse Ana Luiza, que a livrasse dessa doença e de qualquer dor. E que me desse forças pois eu estava com muito medo.

Ana Luiza continuava dormindo pesadamente e eu não queria acordá-la e acabar estimulando mais uma crise de vômitos e dor. Esperei alguns minutos e já não me aguentando de desespero, fomos para o hospital, meus pais, Ana Luiza e eu.

Ao chegar lá, carregando-a no colo, pois ela mal conseguia ficar em pé, fui direto para a emergência pediátrica. Meus pais vinham ao meu lado, carregando bolsas e documentos. O olhar de aflição dos dois me consumia. Eu nunca suportei vê-los angustiados. As duas pessoas que me colocaram no mundo, as duas pessoas que me amam incondicionalmente. Vê-los sofrer sempre me destruiu. E eu tinha que ser forte, para deixá-los fortes também.

A enfermeira me avistou de longe e, preocupada, me chamou para acomodar Ana Luiza num leito confortável na enfermaria. Ela gostava muito de Ana Luiza. Mas ela era sempre muito atenciosa, prestativa e carinhosa com todas as crianças e seus pais. Profissionais assim, fazem toda a diferença.

Aguardei a chegada dos médicos e rapidamente uma delas apareceu. A Dra. Fabiana, tão querida por Ana Luiza, foi quem nos atendeu naquela tarde. Contei o ocorrido, a fortíssima dor de cabeça, os muitos episódios de vômitos, a sonolência e a fraqueza. Ela solicitou exames de sangue, prescreveu medicamentos e sempre muito serena, nos tranquilizou dizendo que os sintomas eram compatíveis com a exposição à radiação (tratamento de radioterapia), mas que os exames de sangue poderiam apontar alguma outra causa, por exemplo, uma anemia ou perda de eletrólitos, justificados pelos intensos episódios de vômitos.

Enquanto aguardávamos, a Dra. Fabiana permanecia sempre por perto. Reexaminou Ana Luiza algumas vezes, verificou as pupilas dela, queria saber se ela estava mais “esperta”, mais acordada. Mas verdade seja dita: Ana Luiza só dormia. Os vômitos passaram, mas a sonolência só aumentava. E ela ficava com as mãos na cabeça o tempo todo. Sem dúvidas algo a incomodava demais. E esses sintomas “vômito/sonolência/dor de cabeça” me atormentavam desde setembro de 2010...

A Dra. Fabiana veio conversar conosco e disse que havia solicitado uma ressonância magnética do crânio. Ana Luiza, com a mão na testa e apenas com um olho aberto disse: “Vou ter que ficar internada?” A Dra. Fabiana apenas disse: “Você vai ficar internada somente por um dia, até sair o resultado da ressonância magnética. Amanhã cedinho, você vai ser a primeira paciente que vou dar alta. Pode ficar tranquila.”

Eu estava preocupada demais, mas a Dra. Fabiana disse que o exame era apenas para descartar algo mais sério, um exame padrão que deveria ser feito em virtude do quadro clínico que ela apresentava, mas que Ana Luiza estava bem e que com toda certeza no dia seguinte, de manhã, já receberia alta.

Eu não sei se ela estava falando a verdade ou se estava tentando amenizar meu desespero, mas a certeza é que ela conseguiu me acalmar um pouco. Só um pouco mesmo.

Meus pais estavam na lanchonete do hospital. Tinham ido buscar um café pra mim. Assim que chegaram expliquei que Ana Luiza ficaria internada para aguardar o resultado da ressonância que seria submetida no fim da tarde. Eu vi a preocupação nos olhos dos meus pais. E tentava, desesperadamente, passar a maior tranquilidade do mundo pra eles dois. Pedi que eles fossem em casa buscar uma roupa mais confortável pra Ana Luiza e nossos itens de higiene pessoal.

Quando eles finalmente saíram da enfermaria, liguei pro Marcos e falando baixinho expliquei que ela ficaria internada pra aguardar o resultado da ressonância que faríamos naquela tarde.

Segurando o choro no telefone, eu disse que estava muito apreensiva e Marcos mais uma vez tentava me tranquilizar. Ele não tinha dúvidas de que não era nada grave. Argumentou dizendo que ela ainda estava terminando o tratamento, que havia feito uma ressonância do crânio há pouco tempo por causa da radioterapia e não tinha aparecido nada. Portanto eu deveria tentar ficar tranquila, pois com certeza não era nada demais. E por fim completou: “Estou indo pro Aeroporto de novo hoje a noite e, se a companhia aérea liberar, embarcarei para Guarulhos de madrugada e devo ficar no aeroporto durante toda a manhã, aguardando o voo pra Buenos Aires. Assim que eu descer no aeroporto de SP amanhã, ligo meu celular e você vai me dando notícias.”

A enfermeira veio nos buscar para realizar a ressonância magnética. Ana Luiza foi sentadinha na cadeira de rodas, ainda muito sonolenta. Ela foi posicionada no tubo e como sempre, ficava imóvel, bem quietinha, esperando o exame terminar. Aplicaram o contraste intravenoso e concluíram o exame. Sem se queixar, ou se lamentar, Ana Luiza apenas submeteu-se ao exame.

Eu, sem poder fazer nada, completamente impotente, apenas pedia que Deus nos protegesse. Olhar para a cara dos médicos era algo que eu não tinha coragem há muito tempo. Não perguntei absolutamente nada. Apenas tirei ela da maca, a abracei bem forte e fui levando-a de volta a enfermaria da emergência no colo. Fui cheirando e abraçando ela bem forte. Eu estava sentindo um medo tão grande!

Voltamos para a enfermaria para aguardar a liberação do quarto no 5º andar. Ana Luiza ficou acordada e falou: “Poxa, nem vamos poder assistir o Disney on Ice, né mãe? Será que a moça vai ficar triste por que nós não vamos?” Algumas semanas antes, uma jovem mãe do Rio de Janeiro, a Rérica, que acompanhava o caso da Ana Luiza, nos enviou ingressos para assistir este espetáculo na pista de gelo e o evento era exatamente naquele dia. Eu disse que teríamos outras oportunidades e que com toda certeza, a moça entenderia.

Ela fechou os olhos, colocou a mão na testa e parecia voltar a dormir. Eu, sentada ao lado dela, apenas segurei nas suas perninhas, beijando-a e acariciando-a. Em minha cabeça, apenas pensava: “Minha filha... Que vontade que nada disso tivesse acontecido em nossas vidas... Esse medo, esse pesadelo sem fim! Que doença terrível!”

Assim que liberaram o quarto no 5º andar, as enfermeiras nos levaram até lá. Ana Luiza acordou e assim que chegou no quarto, quis assistir sua novela preferida.

Sempre tivemos TV por assinatura em casa e ela dificilmente assistia os canais abertos. Como no apartamento onde estávamos hospedados não havia TV por assinatura, Ana Luiza “descobriu” a TV Globo e suas novelas, a Record e especialmente o SBT. Diversas vezes tive que ir até a agência dos Correios próxima de casa, para comprar a Tele Sena e na hora que os números apareciam na televisão, ela pedia que todos fizessem silêncio e anotava os números religiosamente. Sabia toda a grade de programação do SBT, o nome dos programas, o horário que passava cada um deles.

Ela assistia com mais frequência o SBT, mas no fim da tarde, assistia a novela Cordel Encantado e todos que estivessem na sala, tinham que fazer total silêncio. Marcos nunca permitiu que ela assistisse novelas e em Manaus era mais fácil, afinal ela tinha outras opções. Mas em SP, sem poder sair muito de casa, era quase inevitável. Ana Luiza sabendo que o Marcos detestava que ela assistisse novela, pediu com muito carinho: “Deixa, Puí? Só essa novela? Por favor!!” Impossível dizer não, não é mesmo? E o Marcos autorizou, mas ela assistia sempre supervisionada.

Meus pais chegaram, assistimos à novela todos juntos. Ana Luiza conseguiu se alimentar, meus pais foram pra casa, angustiados, mas ela passou a noite bem.

No dia seguinte, bem cedo, às 6h, Marcos meu ligou. Tinha acabado de chegar no aeroporto de Guarulhos e aguardaria o embarque para Buenos Aires, por volta de 9h da manhã.

Pouco tempo depois Ana Luiza acordou queixando-se de dor na cabeça. Ela não conseguia sequer abrir os olhos. Chamei a enfermeira e expliquei que aguardávamos o resultado da ressonância e que eu gostaria de conversar com a Dra. Fabiana.

Ana Luiza foi medicada, mas não parecia fazer efeito... ela continuava sentindo dor. Aquilo me desesperava. Ela pediu pra assistir desenhos e eu liguei a televisão bem baixinho.

Meus pais ainda não tinham chegado. Ainda era cedo e eu queria muito que a Dra. Fabiana chegasse antes deles.

Nada dos médicos, nada da dor de cabeça diminuir, nada de eu conseguir disfarçar meu desespero. Ana Luiza assistia televisão e eu apenas segurava sua mãozinha. Marcos ligou. Queria saber o resultado da ressonância. E nada ainda. Ele disse que já estava na sala de embarque e que logo embarcaria e eu fui ficando cada vez mais angustiada.

Poucos minutos depois, uma das enfermeiras entra no quarto e diz que os médicos queriam conversar comigo lá fora e que ela ficaria com Ana Luiza.

Minhas pernas tremeram. Mal conseguia respirar. Beijei Ana Luiza e disse que já voltava. Ela me deu um beijinho.

Abri a porta do quarto e de longe avistei a Dra. Cecília e a Dra. Viviane, bem em frente ao posto de enfermagem. Elas conversavam, com o rosto apreensivo. E a cada passo que eu dava, eu me tremia ainda mais. Na mesma hora, me lembrei das palavras da Dra. Cecília: “Se o câncer voltar, não teremos mais nenhum tratamento”.

Eu tentava tirar esses pensamentos da minha cabeça. Assim que eu cheguei perto delas e antes mesmo que eu conseguisse cumprimentá-las, a Dra. Cecília me fulminou com suas palavras: “Carol, não tenho notícias boas. Infelizmente temos uma recidiva no sistema nervoso central, que está tomando toda a região meníngea. Fui conversar com o diretor da área de imagem e infelizmente, não temos dúvidas de que seja uma recidiva.”

Apenas coloquei as mãos na cabeça e disse: “Que merda, Doutora! Ô meu Deus, que desespero!!” E caí em um pranto tão desesperador, que mal conseguia enxergar as coisas direito. Me deu uma náusea tão forte, uma tontura, uma vontade de gritar...

As médicas apenas me olhavam, com um semblante de tristeza profunda! Recebi um abraço e tentava me recompor, mas a vontade que eu tinha era de me atirar no chão! “E agora, doutora? E o que a gente pode fazer? Existe alguma alternativa? Alguma radioterapia disponível ou alguma quimioterapia?”

A médica apenas disse que conversaria com a equipe, mas que infelizmente não existiam mais armas para combater a doença. Não era possível fazer cirurgia, e a região a ser irradiada por uma possível radioterapia, seria muito grande, pois o tumor tomava toda a área das membranas que recobriam o cérebro.

Enquanto ela falava, pedi um minuto para ligar para o Marcos, pois ele estava embarcando para a Argentina e eu precisava explicar o ocorrido.

Marcos, que estava indo para a fila de embarque, atendeu no primeiro toque e eu apenas disse: “O câncer voltou!” Sem saber explicar direito, pedi que a dra. Cecília conversasse com ele.

Enquanto eu enxugava as lágrimas e tentava me recompor do desespero, a médica explicava novamente para o Marcos, a situação de Ana Luiza.

Ela me passou o telefone e Marcos disse que não embarcaria mais. Que tentaria pegar a bagagem de volta e que tomaria um táxi até o hospital. E foi o que ele fez. Saiu desesperadamente da fila do embarque, procurou alguém da companhia aérea, explicou a situação, pegou a bagagem de volta e foi direto para o hospital. Ele disse que conversaríamos com os médicos com calma, pois ele ainda estava incrédulo e acreditava que tudo poderia ser um terrível engano.

Eu precisava voltar para o quarto. Precisava me recompor e encarar Ana Luiza. As médicas mudaram as medicações dela, deram analgésicos mais fortes e foram explícitas com a equipe de enfermagem: “Ana Luiza não pode sentir nenhuma dor!”

Voltei para o quarto e Ana Luiza continuava deitadinha. A enfermeira, como se tivesse sido treinada pra esses momentos, apenas me abraçou e sem dizer absolutamente nada, saiu do quarto. Ana Luiza me viu e esticou a mãozinha em minha direção, como ela sempre fazia. E eu segurei sua mão e caí no choro.

“Me perdoa, filha!” Era o que eu dizia... “Me desculpa por chorar! Mas eu preciso conversar com você e estou muito triste.”

Ana Luiza apenas disse: “O que foi, mamãe?” E eu expliquei que o câncer tinha voltado e que por isso eu estava chorando. Ela, com toda sua força, sem derramar uma lágrima sequer, enfaticamente disse: “Mãe, o câncer não voltou!”

Eu expliquei que tinha voltado sim, que as médicas haviam conversado comigo lá fora e que elas não iam inventar uma coisa dessas. Então ela olhou pra televisão, olhou de novo pra mim e com muita calma apenas disse: “Se eu fiquei boa uma vez, vou ficar boa de novo. Deus me ajudou uma vez e vai me ajudar de novo, mãe. Não precisa chorar.”

Quando ela falou isso, me senti um verme. Uma pessoa completamente sem fé, sem otimismo. Chorei mais ainda. E ela disse: “Mãe, eu que estou doente, deitada aqui nessa cama, não estou chorando! Por que você está chorando? Não precisa chorar.”

E ao escutar aquelas palavrinhas da minha filha, chorei ainda mais. E pela primeira vez, abri meu coração pra ela. Disse que eu estava chorando porque não aguentava mais essa doença. Não queria que minha filha passasse por todo o sofrimento de novo. Não aguentava mais os remédios, os exames, as consultas. Que tudo que eu mais queria ela vê-la curada de uma vez por todas. E que o fato da doença ter voltado, me deixava muito triste e por isso eu estava chorando.

Enquanto eu falava, Ana Luiza se emocionou e começou a chorar. E quando eu terminei de falar, ela esticou os bracinhos e me deu um abraço bem forte. Disse que me amava muito. E olhando pra mim ela disse: “Só vou deixar você chorar essa vez, viu? Chega de choro, mãe. Eu vou ficar boa.”

Escutando aquele ser de 7 anos de idade, que em poucas palavras me mostrou o que é ser forte, não tive outra opção: enxuguei as lágrimas, lavei o rosto, respirei fundo e fiquei esperando meus pais chegarem.

Eu tinha que ser forte para dar a notícia pra eles. Da mesma maneira que minha filha foi forte pra mim, eu teria que ser pra eles.

Meus pais chegaram, trazendo lanchinhos pra gente, animados pois achavam que logo ela receberia alta. Eu não perdi tempo. Expliquei, resumidamente, que o resultado da ressonância havia ficado pronto e que infelizmente o câncer tinha voltado. Foi um choque desesperador. Eles ficaram mudos. Vi o abatimento na cara de cada um deles. Meu pai, com um olhar de dor muito grande, perdeu a voz, perdeu as forças. Mal conseguia conversar.

Minha mãe ficou muito arrasada, chorou, me abraçou. O que fazer agora? O que pensar? Ficamos todos completamente despedaçados.

Deixei meus pais com Ana Luiza e saí do quarto. Precisava chorar. Precisava tirar aquele aperto do meu peito. Fui até a outra ala do andar pediátrico, a ala B. Fiquei olhando pela janela. Olhei pro céu. Estava azul. E eu chorei pedindo que Deus tivesse compaixão da minha filha. Que a poupasse de sofrimento. Pedi que ele livrasse ela dessa doença. Me ajoelhei em frente a janela e implorei pra ter forças e seguir em frente em mais uma batalha.

Eu estava exausta. E saber que não existia mais nenhum tipo de tratamento disponível pra ela, me desesperava. Pela primeira vez, estive sem qualquer esperança. Minha filha, mais do que tudo, precisava de um milagre e eu me sentia fraca. Sem forças para pedir mais um milagre. Sem fé pra acreditar que ela ficaria boa.

Mais uma vez, tudo mudou bruscamente. Mais uma vez eu me sentia despreparada para essa mudança absurda na minha vida. Eu estava me sentindo derrotada, fracassada. Parecei ter escalado um poço muito fundo e quando finalmente conseguia me apoiar na beirada, alguém veio e me empurrou de volta.

Fui procurar a Cinthya, mãe da Beatriz. Grande amiga. Mãe que enfrentava a mesma batalha que eu enfrentava. Uma amiga que Deus me presenteou num momento de enorme tristeza.

Beatriz estava internada fazendo seus últimos ciclos de quimioterapia também. Eu precisava conversar com alguém que entendesse meu desespero. Na verdade eu queria pedir ajuda com meus pais. E ela se dava muito bem com eles. Poderia me ajudar, dando forças pra eles, levando-os pra fazer as refeições, conversando...

Contei pra Cinthya e o choro foi inevitável. Ela parecia não querer ouvir. Não querer acreditar. Choramos juntas e ela garantiu que estaria comigo. E me auxiliaria no que eu precisasse.

Quando estava voltando para o quarto, notei que os médicos estavam reunidos na sala de estar da Ala B. Eles sempre se reuniam lá para discutir os casos clínicos. Liguei para o Marcos e perguntei onde ele estava.

Ele estava entrando no hospital. Pedi que ele subisse para o quinto andar, na ala B que eu o aguardaria na área de elevadores.

Meu pai, ainda muito abalado, vagava pelos corredores e na hora que Marcos chegou, pedi que ele levasse as bagagens para o quarto de Ana Luiza, pois eu e ele conversaríamos com os médicos.

Enquanto aguardávamos os médicos saírem da sala onde estavam reunidos, Marcos e eu conversávamos. Estávamos completamente incrédulos. Marcos estava gelado, suado, apavorado. Eu chorava, sem saber direito o que pensar ou fazer.

Neste momento os médicos saem da sala e dão de cara conosco. Marcos disse que conseguiu desembarcar de Guarulhos e queria entender exatamente o que estava acontecendo.

Dra. Cecília, pacientemente, explicou que o câncer havia se manifestado nas menínges, ou seja, nas membranas que recobrem o cérebro. Que não existia uma massa sólida a ser retirada, mas que toda a membrana, estava comprometida, impregnada de células cancerígenas. Não existia possibilidade de cirurgia, nem radioterapia. E a única droga que Ana Luiza ainda não havia utilizado, não teria um efeito significativo na lesão. Mas eles estavam analisando se valeria a pena utilizar esse medicamento, mesmo que de forma paliativa.

Enquanto ela explicava, eu chorava desconsoladamente. Tentava segurar o choro desesperado, mas era impossível. Abraçada ao Marcos, meu corpo tremia inteiro a medida que a chefe da pediatria sentenciava. Os outros médicos, me olhavam com profunda tristeza. Dra Viviane e Dra. Fabiana derramavam lágrimas discretas. Eu podia sentir a dor que elas sentiam naquele momento. Dr. Nevi, o preferido de Ana Luiza, sequer abriu a boca. Não parecia ter condições para falar alguma coisa. Toda a equipe estava muito entristecida. E eu sentia uma verdade muito grande naqueles rostos. E eu agradeci a Deus, por ter tido a chance de lutar ao lado de pessoas tão maravilhosas.

Ana Luiza recomeçaria os exames de estadiamento. Era necessário saber se o câncer havia voltado a crescer em outras regiões para tentar viabilizar algum tipo de tratamento, mesmo que paliativo. Novas tomografias, novos exames. Não sentia que havíamos voltado a estaca zero. Sentia que havíamos voltado a estaca -1000 (menos mil)!

Caminhamos juntos até o quarto onde Ana Luiza estava. Ela estava acordada na hora que entramos e ficou extremamente feliz quando viu Marcos. Meu coração estava fragilizado demais e ter Marcos pra me amparar era muito importante. Graças a Deus ele não embarcou para Argentina. Enfrentar tudo isso sem ele por perto, teria sido ainda mais difícil.

Depois do almoço, Marcos nos deixou no quarto e conseguiu “fugir”. Ele precisava conversar com os médicos, mas sem a minha presença. Ele queria saber exatamente como seria a progressão da doença, o que aconteceria com Ana Luiza, quais os sintomas que deveríamos esperar. E ele não estava certo se eu conseguiria ouvir as respostas. Então foi, sozinho, conversar com Dr. Nevi.

Ele foi até o ambulatório de pediatria no térreo do hospital e perguntou. O “médico preferido”, Dr. Nevi, se despindo da condição de médico, explicou a situação como um grande amigo. E amigos são honestos.

Ele disse que Ana Luiza poderia evoluir com crises convulsivas e em uma destas crises, não voltar mais. Ou poderia falecer dormindo, como um passarinho, em virtude de uma parada cardiorrespiratória. Ele disse que a droga disponível, não teria efeito curativo, apenas paliativo, no intuito de prolongar a vida de Ana Luiza e melhorar a qualidade de vida por mais algumas semanas.

Dra. Cecília já havia nos explicado que uma recidiva nesta região era muito rara, que a região mais comum era o pulmão. E eles não sabiam explicar o motivo deste tipo de recaída. Algumas literaturas falavam, que crianças “super-tratadas” tinham recidivas em regiões incomuns e que este parecia ser o caso de Ana Luiza.

Marcos ouviu tudo atentamente. Perguntou sobre a necessidade dela ser intubada, caso parasse de respirar. E Dr. Nevi foi muito honesto. Qual seria o objetivo de intubar Ana Luiza? Sem tratamento, o câncer só se espalharia e a consumiria diariamente, prolongando um sofrimento, sem qualquer expectativa de melhorar. Mas a decisão era nossa, dos pais. Ele, como amigo, apenas sugeriu que, quando a hora de Ana Luiza chegasse, nós a deixássemos ir.

Pela primeira vez, o médico que havia se declarado “cético”, disse que Ana Luiza era uma criança muito especial, maravilhosa, madura, acima da média em todos os quesitos, e que pessoas assim, costumam ter missões breves na Terra.

Marcos agradeceu e saiu do consultório. Pela primeira vez, se viu realmente sem saída. Sempre havia havido uma chance - um hospital melhor quando ainda estávamos em Manaus, um protocolo de quimioterapia mais forte como o transplante autólogo ou uma radioterapia mais moderna, como a IMRT. Dessa vez, só o que poderíamos fazer é estar com ela e ampará-la. Ele chorou compulsivamente pelos corredores do hospital.

A tarde, os exames recomeçaram. Ana Luiza precisaria submeter-se a um mielograma, exame extremamente doloroso e desconfortável, o qual ela nunca havia feito antes.

O exame, basicamente, consistia em enfiar uma agulha enorme na coluna vertebral, para coletar o líquor, um líquido importante que recobre todo o sistema nervoso. A intenção era confirmar a presença de células malignas. Ainda nutríamos a esperança de que fosse alguma outra patologia, uma infecção viral ou alguma espécie de meningite. E o exame serviria para diagnosticar definitivamente a recidiva.

O médico que veio fazer o exame, experiente, cuidadoso, carinhoso, transmitiu muita segurança pra ela e pra gente. Posicionou Ana Luiza e pediu que um de nós, segurasse o tronco e a mantivesse na postura. Ela não quis que eu a segurasse. Queria apenas o Marcos. Assim que ele iniciou o procedimento, Ana Luiza gritava desesperadamente. Chorava muito, um choro desesperado de muita dor, e gritava dizendo: “Aiiii, papai!! Me ajuda!!! Aiiii, papaaiii!! Socorro!! Aaaiiiiiii” Eu não aguentava ouvir aquilo. Era enlouquecedor ouvi-la gritar daquele jeito. Nunca tinha visto Ana Luiza tão sentida, tão sofrida.

Após o exame, ela teria que ficar deitada por 4h, sem poder flexionar a coluna e por causa disso, somente no dia seguinte ela continuou os exames de estadiamento. Marcos passou a tarde deitado com ela. Ela recebeu diversas visitas. Os grandes amigos de sempre estavam lá. Os novos amigos da radioterapia também apareceram.

Os efeitos dos analgésicos potentes e do corticóide logo apareceram e Ana Luiza parecia mais disposta. Ela não desgrudava do “puí”. No dia seguinte, Marcos foi com ela em todos os exames: ressonância, tomografia e cintilografia. Mas em virtude da situação, eles estava permitindo que eu também a acompanhasse. Mas Ana Luiza só queria saber do “puí”. Só queria o colo dele.

Os exames foram feitos com a urgência que o caso exigia. Mesmo os médicos sabendo que a cura não viria, isso nunca seria motivo para a equipe do A.C Camargo deixasse de se dedicar a nenhum de seus pacientes.

Passado os exames, já de posse dos resultados, a Dr. Cecília ligou para o apartamento onde estávamos internados e pediu que fôssemos ate o consultório.

Explicou que o tumor tomou toda a região das meninges, não só a parte que recobre o cérebro como também a que recobre a medula espinhal. Os resultado do Mielograma apontou a presença de células anormais, portanto estava confirmada a recidiva do rabdomiossarcoma. Ela falou que a única droga disponível teria um efeito paliativo, ou seja, poderia segurar o avanço da doença, por outro lado, poderia debilitar muito a criança, pois Ana Luiza já tinha feito um transplante autólogo há pouco mais de 3 meses e que sua medula óssea ainda estava enfraquecida, podendo não responder bem a esta nova quimioterapia. Ela concluiu dizendo que a decisão pela quimioterapia era nossa.

Perguntei o que ela achava. Perguntei se ela achava sensato fazer a quimioterapia. A resposta foi simples: “Carol, Ana Luiza não é minha filha. Eu não posso dar opinião. Não fui eu que carreguei ela no ventre. Somente você pode decidir. E não existe certo e errado nessas horas. Tem familiares que preferem ir pra casa, aproveitar o tempo restante. Outros preferem ir até o fim. Mas essa decisão é sua. Somente você, que carregou Ana Luiza, pode decidir.”

Chorei muito. Um choro sentido. O momento mais triste da minha vida. E tudo que eu mais queria era colocar Ana Luiza nos braços, pegar um avião e voltar pra Manaus. Entrar em casa, permitir que ela entrasse em seu próprio quarto mais uma vez, jogar videogame com ela, tomar sorvete, deitar no chão da sala, comer pipoca, arrumar seu cabelo pro balé, levá-la pra ver o rio, dormir ao lado dela. Tudo que eu mais queria era a minha vida normal de antes. Chega de quimioterapia!!

Ao mesmo tempo, eu imaginava que, como Davi, esta pequena quimioterapia, seria capaz, miraculosamente, de atingir em cheio o grande Golias, que era esse câncer maldito. O fato é que eu não aguentava mais. Não queria mais decidir entre a cruz e a espada. Não aguentava mais vê-la sofrendo, vomitando, perdendo cabelo. Tudo que eu queria era que isso fosse um pesadelo e que eu acordasse em Manaus. Em minha casa. Com minha filha, saudável, me acordando dizendo: “Mãe, você já dormiu muito. Tá na hora de acordar!”, como ela sempre fazia nos finais de semana, quando vinha ao meu quarto e passando a mãozinha no meu rosto, me chamava pra ficar com ela.

A Dra. Cecília nos deu um tempo para pensar. Marcos e eu, cabisbaixos, fomos voltando para o quinto andar. Marcos foi enfático: “Vamos fazer a quimio, Carol. Daqui 5 semanas, 5 meses, 5 anos, estaremos tranquilos pois teremos em nossos corações, que fizemos tudo que tinha disponível em 2011 para tentar curar Ana Luiza. Eu sei que estamos todos cansados, ela também. Mas eu acho que devemos tentar.”

Pensei muito. Chorei muito. Conversei com nossos pais e nossos amigos próximos. E poucas horas depois decidimos fazer a quimioterapia. Voltei ao ambulatório de pediatria e confirmamos a nossa decisão. Dr. Nevi, concordando com as palavras da Dra. Cecília disse: “Nosso maior objetivo sempre será dar a maior qualidade de vida possível para Ana Luiza. Esta fase é muito difícil, muito dolorosa, mas apenas os familiares podem decidir. E não existe certo e errado. Se vocês decidissem voltar para Manaus e curtir os últimos de Ana Luiza em casa, teriam nosso apoio. Querendo ficar, estaremos ao lado de vocês. Conte conosco”.

No dia seguinte, Ana Luiza iniciaria o 1º dia de quimioterapia com a única e última droga disponível, o Topotecan. Ela já estava tomando um corticóide e um anticonvulsivante, para diminuir o edema, a dor e evitar crises convulsivas. Ela faria 2 ciclos de quimioterapia. Cada ciclo com duração de 3 dias. Após o 3º dia de quimioterapia, ela receberia alta do hospital e após 21 dias, faria mais um ciclo de 3 dias e repetiria os exames de imagem para sabermos os efeitos da medicação no tumor. Se tudo estivesse do mesmo jeito, a quimioterapia seria suspensa. Caso houvesse alguma redução prosseguiríamos com outros ciclos.

Avisei familiares, amigos e a família paterna/biológica de Ana Luiza. Agora nos restava torcer para que esta medicação fizesse algum efeito no tumor. Agradeci a Deus por mais um dia, pedi misericórdia pela vida da minha filha e me concentrei em minhas próprias orações. O que dependia das mãos dos homens continuava sendo feito. Agora, mais do que nunca, esperávamos por um milagre de Deus.

sábado, 23 de julho de 2011

De 26 de Abril a 31 de Maio de 2011

Depois de arrumar todos os cacarecos de volta nos armários do apartamento do tio Cláudio, finalmente poderíamos fazer uma refeição bem ao gosto de Ana Luiza: comida feita no fogão, como ela dizia.

Mas apesar de todos os esforços, Ana Luiza não conseguia recuperar os quilos perdidos. Ela ainda comia muito pouco e submetendo-se a radioterapia ainda tinha náuseas e uma certa falta de apetite, ambas causadas pelos efeitos do tratamento. Mesmo com toda a criatividade da vovó, ela ainda se alimentava muito pouco.

A radioterapia do crânio seguia bem. Ana Luiza fez amizade com todos os pacientes que também faziam tratamento no mesmo horário. Diariamente, ela conversava, abraçava e cumprimentava os novos amigos. Todos, muito mais velhos que ela. Era muito engraçado ver como ela se relacionava bem com os amigos, todos acima de 40 anos. Gostava de mostrar os brinquedos, os joguinhos, fazia cartinhas e desenhos. Ana Luiza nutria um carinho todo especial pela Denise e pelo Sr. Humberto, dois seres humanos incríveis que estiveram conosco nessa fase do tratamento, cada um segurando o seu fardo, mas sempre com um baita sorriso no rosto.

Todos os dias a rotina era a mesma. Diariamente, no início da tarde, a gente pegava um táxi (e ela também ficou amiga de todos os motoristas do ponto de táxi próximo ao apartamento, em especial o Sr. Walter, que se tornou um grande amigo da pequena), entrava no hospital, depositava os cupons fiscais na urna localizada na recepção, cumprimentava as recepcionistas e seguranças do bloco B, subia até o 5º andar, fazia suas provas e atividades da escola e, por fim, descia até o 1º subsolo, para aguardar o seu horário de tratamento.

Assim que ela chegava lá e pegava uma senha, o salão se iluminava. Ela arrancava sorrisos de todos, sempre cumprimentando todo mundo, abraçando os amigos e indo direito ao balcão de atendimento, onde ajudava os atendentes, que também já eram seus amigos.

Todos tinham muito carinho por ela. E era recíproco. Ana Luiza adorava conversar com cada um deles. Muitos confessavam que a pequena era a alegria do setor de radioterapia. Que com seu jeito cativante e sereno, tornava tudo muito mais fácil. Vários pacientes que precisavam irradiar a região de cabeça e pescoço e necessitavam utilizar a mesma máscara rígida que Ana Luiza utilizava, não tinham a mesma desenvoltura da pequena.

Ana Luiza nunca precisou de sedação. Mas vários adultos precisavam e quase todas as crianças da idade dela também. E ficar imóvel, usando uma máscara desconfortável, era realmente assustador e em alguns casos, impraticável. Mas Ana Luiza saía do tratamento e ainda tranquilizava os pacientes que estavam iniciando o tratamento: “Pode ficar tranquila, Dona Flor. Não dói nada, só o rosto que fica um pouco amassado.”

Na Escola da Pediatria, onde ela fazia as provas e estudava as disciplinas do 3º ano do ensino fundamental, não dava pra ter certeza de quem se divertia mais, se era Ana Luiza, ou se eram as professoras.

Apesar de ter ficado sem estudar desde setembro de 2010, a pequena não tinha nenhuma dificuldade com os ditongos, hiatos, paroxítonas, que a Prof. Rejane a ajudava a lembrar. As cores primárias e secundárias, graças a Prof. Eliane também foram facilmente estudadas, quer dizer, “brincadas”, afinal tudo com a Prof. Eliane virava brincadeira e ela adorava. A matemática com a tia Iara também era tranquila e ela tirava os números de letra, por assim dizer. As provas de história e geografia com a Prof. Camila também eram fáceis e, eventualmente, ainda sobrava um tempinho pra jogar algum jogo, ou fazer algum desenho. E a Prof. Fabiana sempre presente em todos os momentos, sempre brincando e curtindo a presença da Ana Luiza na escolinha.

Apesar de estar sem estudar há 8 meses, ela não teve dificuldade com absolutamente nada. As professoras arriscavam dizer que ela voltaria pra escola no segundo semestre e ainda seria a primeira da turma. Eu ria. Ana Luiza dava de ombros. Desde muito pequena ela se destacava na sala de aula, mas nem ela, nem eu achávamos que fosse algo extraordinário. Ela continuava sendo a criança linda e meiga de sempre. Ingênua, sincera, comunicativa e carinhosa com os amigos. Aprendeu a ler as primeiras palavras aos 4 anos. Aos 5 já escrevia com letra cursiva e contava até 100. Mas pra ela aquilo era normal. Ela nunca se achou especial e eu, também achava que eu não deveria tratá-la como diferente. Ela sempre me pareceu apenas uma criança inteligente. E me preocupava essa “aceleração” do aprendizado. Mesmo tão capaz intelectualmente, ela ainda era uma criança muito nova e agia exatamente como uma criança de 5 anos. Nunca foi estimulada a ser precoce. As professoras me garantiam que estavam indo na velocidade dela. E eu aceitava assim.

Os dias corriam tranquilos. Ana Luiza sempre muito animada, contagiando todo mundo com sua alegria e simpatia. A cada dia, a cada sessão de radioterapia concluída, nos aproximávamos do momento tão esperado: o fim do tratamento e o retorno para Manaus. Ainda havia uma pequena jornada, pois ainda faltava a radioterapia do tórax e da coluna dorsal, mas já havíamos estado mais longe. Estar próximo do fim, gerava uma ansiedade boa e uma certa insegurança de como seria nossa nova vida. Mas sem dúvidas, o maior sentimento, era a alegria nos corações de todos da família.

Todos os dias, na hora de ir embora do hospital, ela nunca caminhava a meu lado, sempre andava muito a frente, sempre cumprimentando os funcionários do hospital que iam passando. Cumprimentava as zeladoras, os funcionários do Banco de Sangue, as enfermeiras, os médicos e as moças que levavam as refeições nos quartos. Se encontrasse um dos médicos, parava pra conversar. Mas sempre que chegava até o local onde pegávamos o táxi para voltar pra casa, ela sempre se escondia no balcão das recepcionistas. E os seguranças, sempre davam risadas, entrando na brincadeira da pequena.

Ela era muito querida, eu não tinha dúvidas. E isso sempre me emocionava. Uma criaturinha de 7 anos, que era capaz de conquistar e cativar tanta gente grande, era motivo de muito orgulho pra mim. Mesmo enfrentando seus próprios problemas (nem poucos, nem simples), ela não se fechou em seu mundo, como a grande maioria de nós, adultos fazemos.

A realidade é que muitos adultos, ao enfrentarem um problema, seja ele grave ou não, já tem motivos e desculpas suficientes para simplesmente deixar de dar bom dia. O porteiro fica invisível, seus colegas de trabalho também. Até seus familiares tem que encarar sua auto-piedade. Nada é maior e mais importante do que nossos próprios problemas. Dar um bom dia sincero, quando o nosso próprio dia é um festival de problemas, é para poucos. Fico feliz e muito orgulhosa de saber que minha filha está nesse pequeno e seleto grupo.

Ao final da radioterapia de crânio, faltando uma semana pra o início da radioterapia do tórax e das vértebras e, finalmente o término do tratamento com a remissão completa da doença, tivemos uma consulta de rotina com a médica responsável pelo tratamento de Ana Luiza, que além de ser a chefe do departamento de oncologia pediátrica, havia se tornado uma pessoa muito especial para nossa família, pois mesmo com todo seu pragmatismo, mesmo com uma “casca” mais séria, ela sabia usar as palavras certas e com muita honestidade, nos dava segurança para seguir firme no tratamento.

Os exames de sangue de Ana Luiza não haviam ficado prontos a tempo para a consulta, mas clinicamente ela estava bem e a médica apenas conversou conosco. Uma conversa franca, mas dolorosa. Como eu costumava dizer, essas conversas pareciam aqueles momentos em que você está se deliciando com um bolo de chocolate e vem alguém e joga areia em cima.

Mas a verdade sempre será a verdade e, por mais dolorosa que ela pareça, é importante para nos sustentar. Ninguém sobrevive as custas de uma mentira, por mais que ela seja doce. A honestidade, além de uma virtude, é uma necessidade básica para encararmos esta doença tão nefasta. Na verdade, se a gente parar pra pensar, está máxima serve pra tudo nesta vida.

A médica esclareceu que Ana Luiza estava bem, que ela estava muito satisfeita com a situação clínica dela, mas que uma recidiva do tumor, colocaria tudo a perder, afinal a pequena já tinha utilizado todo o arsenal disponível para combater esta doença, incluindo quimioterapia de altas doses com transplante autólogo de células tronco, modalidade que ainda não havia sido muito bem relata na literatura como sendo eficaz em casos de rabdomiossarcoma metastático. Ela já havia usado diversas drogas e, caso o tumor voltasse a crescer em alguma parte do corpo, Ana Luiza não teria mais chances de cura.

Ouvir esta verdade foi bastante doloroso. Quando falamos de câncer, a palavra cura, é algo ainda muito distante. Mesmo em pessoas que estão livres da doença há anos, o temor a cada exame de rotina, é como um pesadelo que não nos abandona nunca. Usa-se, apropriadamente, o termo “doença sob controle”, como bem esclareceu um dos maravilhosos médicos da Ana Luiza. E apesar de ter a doença sob controle hoje, o amanhã sempre permanecerá desconhecido. Na verdade esse é o mistério da vida. O amanhã sempre será desconhecido, tendo câncer ou não.

Entretanto, estar com a doença sob controle já é algo a ser comemorado. Um tratamento que foi brilhante desde o início, só pode ser comemorado, apesar das verdades incontestes da médica. A série de milagres que vivenciei, me permitem comemorar. O que fica em nossos corações é o desejo de que a doença permaneça sob controle por toda a vida de Ana Luiza. E que este pesadelo, não passe disso: um pesadelo, daqueles que você acorda e respira aliviada tendo a certeza de que tudo continua bem.

Terminada a consulta, fomos almoçar e logo em seguida nos dirigimos para o setor de radioterapia e, quando os exames de sangue de Ana Luiza ficaram prontos, uma das médicas me chamou até o consultório novamente.

O sangue de Ana Luiza estava muito ruim. Aquilo me deu um frio na espinha. Inesperadamente, os leucócitos e neutrófilos estavam muito baixos e, contrariando a minha vontade (e pela expressão da médica, a dela também), aquilo poderia ser uma recidiva do câncer, na medula óssea.

Era sexta-feira. Respirei fundo e, depois de ter ouvido tudo aquilo sobre uma possível recidiva, só me restava ter calma. Chorar ou me desesperar, seria completamente inútil, mas quem disse que a gente controla nosso coração. A sensação que eu tinha, era que ele tinha parado na minha boca. A médica me orientou a repetir o exame na segunda-feira. Caso estivesse do mesmo jeito ou pior, ela seria submetida a uma biópsia de medula óssea.

São nestas horas que a nossa fé é provada. É tolice tentar demonstrar a nossa fé quando tudo está dando certo. Nas dificuldades é que devemos vislumbrar o nosso amor a Deus e o amor dEle conosco.

Comentei com meus familiares, tentando transmitir uma tranquilidade que não existia em meu coração. Mas deu certo. Ninguém estava tão preocupado, nem a própria Ana Luiza, que apenas disse: “Ai, mãe. Isso não é nada demais! Calma, tá?”

Na segunda-feira, acordei do pesadelo. Exames normais. Ufa! Pra ser mãe de Ana Luiza, tem que ter coração forte, pensei eu. Foi apenas um susto, disse a médica com um sorriso aliviado, mas ainda sem compreender o motivo da queda abrupta da imunidade. Talvez jamais saibamos o que causou essa alteração inesperada. A lição que ficou pra mim, é que esta doença tem que ser respeitada. Cura? Só daqui há 5 anos usarei esta palavra. E olhe lá.

Durante este período mais tranquilo (e menos doloroso) do tratamento, afinal Ana Luiza não teve nenhuma intercorrência grave devido a radioterapia, tivemos momentos de muita tranquilidade. Passeamos, nos divertimos em casa e estávamos, literalmente, curtindo o momento. O cabelo, os cílios e sobrancelhas voltando a crescer, traziam de volta o rostinho de criança saudável que ela sempre foi. Um dia, a pequena se olhou no espelho e, modesta, disse: “É... Até que eu estou me achando bonita de novo.” Rimos, as duas, em frente ao espelho do banheiro. Beijei demais aqueles parcos cabelinhos lavados e cheirosos de xampu!

Mas o mundo não para. Hoje estamos encarando o fim do tratamento, enquanto outros estão no meio dos processos dolorosos que invariavelmente levam a cura e, outros tantos, estão apenas iniciando sua entrada neste “mundo paralelo” que é o diagnóstico de câncer. Muitos estão com a doença sob controle há anos, mas continuam tendo seus próprios pesadelos, ao se submeterem a exames de controle, por medo de uma recidiva. Outros choram, pela falta de chances de cura, ao serem incluídos nos Cuidados Paliativos. Outros estão diantes de caixões, perdendo seus entes queridos para esta doença nefasta.

Enquanto a gente curtia momentos de tranquilidade, era impossível não pensar em outras pessoas. E nestes momentos de alegria, qualquer um de nós passa a ter o direito de apenas “curtir nossa felicidade”, não é mesmo? O pensamento da grande maioria das pessoas é: “Eu já sofri bastante. Tenho o direito de aproveitar meu momento. Não quero mais problemas. Vou me envolver com problemas dos outros?!

Mas recebi várias mensagens, vários e-mails, várias ligações e sempre alguém me pedia algum auxílio ou orientação. Pessoas de São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus. Pessoas desconhecidas. Apenas pediam ajuda. Pra divulgar alguma coisa, pra tentar conseguir uma vaga no hospital, pra agendar uma consulta, pra perguntar o que fazer.

E ao tentar ajudar timidamente, algumas pessoas que me procuravam, passei a presenciar um lado desse "mundo paralelo" que felizmente nunca vivenciei: as dificuldades.

Claro que nós enfrentamos dificuldades. Mas todas as que passamos até aqui, se resumem aos sofrimentos do tratamento em si. Ver minha filha chorar e se angustiar, faz parte do tratamento em busca da cura. É doloroso demais e por vezes parece ser insuportável. Mas esta era a nossa dificuldade.

Os custos nunca foram impossíveis de se pagar. Usamos nossas reservas, inspiradamente guardadas pelo Marcos, desde que nos casamos. Nunca nos faltou também, parentes, familiares e amigos para nos socorrer, nos abraçar e confortar. Até desconhecidos, genuinamente mobilizados, torciam e oravam em favor da pequena. E não eram poucos.

Entretanto, presenciar a negligencia absurda, para com as pessoas mais necessitadas, é MUITO angustiante. Eu não sou Madre Tereza de Calcutá, nem um exemplo de cidadã a ser seguido, mas se você presencia tantas barbaridades e vive sua “vidinha” (e seus próprios problemas) como se as barbaridades não existissem, acredite: Você não é um ser HUMANO. Você é apenas um SER.

Lógico que eu poderia (e estaria no direito) de evitar toda essa carga em cima de mim. Eu já tinha meus problemas e eles eram, de certo modo, muito grandes também. Mas quem é capaz de passar por um câncer infantil e simplesmente voltar a viver a vida como se nada tivesse acontecido? Como não se sensibilizar, quando temos o conhecimento sobre a dor que é encarar um tratamento de câncer, principalmente o infantil?

Me entristecia (além de causar indignação) saber que a grande maioria destas famílias, contava muito mais com a solidariedade dos outros, do que com o governo, propriamente dito. As crianças carentes com câncer não precisam apenas de solidariedade. Elas precisam de dignidade.

Nenhuma família, consegue sobreviver com o dinheiro pago pelo TFD – Tratamento Fora do Domicílio. No máximo, esse valor ajuda com alguma das despesas, mas estar “fora do domicílio”, implica antes de tudo, encontrar um domicílio para ficar. E nisso, as famílias tem que contar com a solidariedade de ONGs e Instituições filantrópicas, que abrigam essas pessoas, depois de critérios (e filas) gigantescas.

E os medicamentos? E o cuidado diário? E a alimentação? E a dignidade?

Sair de sua casa, do conforto do seio da família e dos amigos, para ir em busca de um tratamento, é algo muito triste. Vi muitas mães sozinhas, pais que perderam o emprego, familiares que pularam do barco. Eu vi o que é carência e necessidade, em meio a um problema tão grande.

As coisas, não precisavam ser assim em um país tão rico como o nosso. As crianças acometidas da pior e mais terrível e temida doença, necessitam de mais dignidade e respeito. Num país de dimensões continentais, TODOS os estados da Federação, invariavelmente, buscam o Estado de São Paulo para ter o melhor tratamento e aumentar as chances de cura.

Enquanto eu vejo tantos amazonenses vindo se tratar em SP, é impossível não se indignar com a construção do estádio mais caro da Copa do Mundo de 2014 em Manaus. Vamos tem um estádio moderno (e muito caro), para nossos parcos times se esbaldarem, mas vamos continuar enviando nossas crianças para São Paulo, porque não temos sequer uma UTI pediátrica no único hospital de câncer do Estado.

Temos uma das maiores e mais caras pontes construídas no País (que até hoje ainda não está funcionando), mas continuaremos tendo material hospitalar de péssima qualidade nos hospitais e postos de saúde do Amazonas.

Imaginar que nossa cidade, um dos maiores PIB do País, em pleno 2011, não tem condições de fazer determinados diagnósticos, por falta de estrutura física e capacidade técnica, é simplesmente incompreensível.

Aos dirigentes (e sociedade em geral - sim, também somos responsáveis), cabe apenas dois sentimentos: a indiferença, por acreditarem que tudo está perdido e por isso, dão de ombros à necessidade de tantas famílias e crianças. Ou a tristeza de não conseguirem fazer nada, culpando o “sistema”. Outros continuam e continuarão perpetuando o “lucro” que esta situação lhes proporciona. Outros jogarão a toalha e simplesmente dirão: “Não tem mais jeito”.

Ana Luiza me provou o contrário. Vi milagres. Vi um corpo tomado pelo câncer, voltar a ser um corpo livre de doença, contrariando estatísticas médicas de um dos melhores hospitais de câncer do mundo.

Minha filha me mostrou que é possível, SIM, tornar este tratamento mais humano. Que depende do paciente, mas que depende muito, das pessoas que estão ao nosso redor. O sorriso da recepcionista, o carinho da enfermeira, a atenção do médico. A solidariedade da pessoa desconhecida, a preocupação da mídia, o interesse dos políticos. Tudo isso, é capaz de minimizar a dor, que ela e que nós, familiares, passamos durante os últimos meses.

Mas a verdade inconteste é que a grande maioria dos cidadãos continuará entorpecida pela falta de fé, até um filho/sobrinho/parente/amigo deles adoecer. Essa é a verdade. E a grande maioria dos que são postos à prova ao serem diagnosticados com esta doença desgraçada, se tornam pessoas cansadas. Outras frustradas. E poucas realmente optam por continuar lutando contra o câncer, mesmo quando o seu próprio câncer já foi vencido.

A radioterapia do crânio teve fim. Ana Luiza estava radiante. Nada de máscaras amassando o rosto. Comemoração de todos nós. No dia seguinte iniciou-se a última etapa do tratamento: radioterapia do tórax e das vértebras.

Os médicos estavam felizes, os outros pacientes (tornados amigos), também comemoravam. Sempre que alguém concluía o tratamento e entrava na fase de acompanhamento/controle, era uma grande festa.

A felicidade e a ansiedade estampadas em minha cara, eram incontroláveis. Pouco mais de um mês, era o tempo que nos separava de nossa casa. E durante nosso momento triunfal, onde caminhávamos rumo a vitória, onde tudo era alegria... ao nosso redor, algumas coisas não estava dando muito certo.

A maioria de nós, tomaria a atitude mais comum: “Vou deixar de aproveitar minha felicidade, por causa da infelicidade dos outros?” Quantas vezes deixamos de compartilhar a dor dos outros, simplesmente porque não queremos perder nossos clima de “festa”? Eu estou feliz e lá vem aquele meu amigo triste, com seus problemas...

O que faz a diferença agora, é que sabemos que a tristeza de um amigo hoje, pode ser a minha tristeza amanhã.

Soraya, mãe da linda Giulia, nos avisou sobre uma piora repentina da pequena. Internada na UTI, o câncer de Giulinha parecia ter voltado a crescer. Uma dor sem medida atingiu meu coração. Seus pais, inconsoláveis, seguiam firme ao lado dela, lutando por sua vida. A matéria na revista Veja SP, mostrava uma criança feliz, se tratando de um câncer. Poucas semanas após a entrevista, a doença havia dado uma reviravolta. “Como somos frágeis e limitados”... pensei. E Giulia seguia internada na UTI do GRAAC-SP. E seus familiares apreensivos, seguiam tentando dar forças uns aos outros. A mim, cabia apenas, o papel de um amigo: Estar ao lado deles e me colocar a disposição para o que fosse necessário.

Num destes dias de visita, levei Ana Luiza comigo até o GRAAC-SP e ela, impedida de visitar Giulia na UTI, apenas escreveu um bilhete para Giulia e para seus pais. Paulo, pai da pequena Giulia ficou muito emocionado. A preocupação da minha pequena, não era com Giulia. Era com os pais dela. E ela estava certa. Nestas horas, quem sofre somos nós. Giulia seguia sedada e lutando para viver, tendo os melhores profissionais ao seu dispor. O sofrimento maior residia no coração daqueles pais. E era impossível dimensionar aquele desespero.

Em meio a tudo isso, o Celso, amigo da família, internado a longos dias, faleceu vítima de um câncer no pâncreas. Ana Luiza ia visitá-lo diariamente. Na época da internação de fevereiro/março/abril, quando ela ficou 47 dias internada, o Celso também estava internado. Na ocasião, Ana Luiza tinha feito um “plano de fuga” pra ele. Ele fugiria do quarto do hospital usando um balão de ar quente, enquanto ela fugiria usando balões de gás hélio! Demos muitas risadas, era impossível resistir ao bom humor da Ana Luiza!

Mas toda tarde, ao sair da Radioterapia, nós visitávamos o Celso. Muito fragilizado e já enfrentando seus últimos dias, Ana Luiza entrava no quarto dele dizendo: “Celso, você tá muito magro! Tem que comer mais! As enfermeiras estão fazendo você passar fome, né?”

Era doloroso vê-lo definhar. Mas Ana Luiza não via uma pessoa definhando. Ela via alguém que precisava de forças. E no final das contas, é isso mesmo que temos que fazer. Temos que continuar dando forças e continuar tendo fé, mesmo ao ver um corpo fraco e extremamente debilitado. O espírito precisa se manter forte e temos capacidade de fortalecê-lo com nossa fé.

Ana Luiza via apenas via um corpo que precisava de alimento. Ela não via a morte iminente. Sem querer, ela me dava mais um “tapa na cara”.

Quando dei a notícia de seu falecimento, Ana Luiza pareceu não se importar. Levantando os ombros e virando a cabeça para o lado, como quem diz: “fazer o quê, né?!” ela apenas disse: “Tá bom...” e continuou assistindo TV.

Fiquei um pouco surpresa com a atitude dela. Aos olhos ignorantes de uma mãe em aprendizado, poderia concluir que ela não tinha tanta afinidade com o Celso, ou que era indiferente à sua morte. Na verdade, a atitude dela era de naturalidade. A atitude real de uma pessoa que crê numa vida plena, longe desta Terra deveria ser essa. Morrer é apenas uma etapa da vida. E quando temos a certeza de que existe algo infinitamente melhor nos aguardando, entristecer-se e indignar-se, parece algo paradoxal.

A objetividade das crianças é uma das coisas mais maravilhosas deste mundo. Uma pena que a gente deixa de ser criança tão cedo e, o pior: tem pais que incentivam a maturidade precoce, exigindo de seus filhos atitudes que não lhes pertencem.

Três dias após esta notícia tão triste pra mim e muito dolorosa especialmente para minha mãe, que se colocou a inteira disposição da esposa do Celso, auxiliando-a com os trâmites burocráticos do envio do corpo para Boa Vista-RR, recebo mais uma pancada: Giulinha, com menos de 2 anos de idade, falecia vítima de um neuroblastoma avançado.

Antes de sair de casa para ir até o GRAAC-SP encontrar com os pais de Giulia e prestar minha solidariedade, expliquei para Ana Luiza, que Giulia tinha falecido. E mais uma vez ela apenas disse: “Tudo bem. Vá lá ajudar os pais dela.

Respirei fundo e, tentando ter pelo menos metade da força da minha filha, cheguei no hospital e encontrei com os familiares da pequena Giulia, que chorando me abraçaram. A pequena Giovana, irmã mais velha de Giulinha, de 8 anos, no meio de tudo aquilo, me afligia. Como suportar a dor da perda? Era a pergunta que não saía da minha cabeça. Como eles conseguirão seguir em frente?

Assim que Soraya saiu do elevador, a abracei forte e foi inevitável não derramar lágrimas. Diante de uma mãe que perdeu um filho, nada que você fale, é capaz de diminuir a dor no coração. Sendo mãe, apenas me coloquei em seu lugar e ao imaginar a perda de minha Ana Luiza, conseguia vislumbrar aquele sofrimento absurdo.

Me coloquei a disposição da família. Auxiliei nos trâmites relativos ao embarque do corpo para Manaus, confortei familiares e também fui até o apartamento deles, para ajudar com as malas. Antes de sairmos do hospital rumo ao apartamento, Soraya segurou minhas mãos e disse algo que me desmoronou: “A vitória da Ana Luiza será a vitória que minha filha não teve! Te amo, minha amiga e conte comigo sempre!”

Ouvir aquilo dilacerava meu coração. Que doença terrível, meu Deus! Que dor absurda aqueles pais estavam sentindo. Ao ver o Paulo, pai de Giulia, chorando desesperado, pude visualizar o amor que eles sentiam pela filha. Que sofrimento absurdo! E em pensamento, pedi o consolo aos pais e familiares, mas não deixei de implorar a Deus, que me poupasse dessa dor. Fiquei com eles durante toda a tarde e início da noite. Arrumei a mala da Giulia. Dobrei cada roupinha cuidadosamente e enquanto eu fazia isso, podia ouvir o choro angustiante de Soraya e Giovana. Os auxiliei no que pude e voltei pra casa.

Entrei no apartamento e sem chorar, apenas abracei Ana Luiza. Ela detestava choro e também não era muito fã de abraços longos. Contei o ocorrido a minha mãe, meu braço direito (e esquerdo) aqui em SP e tentei me reequilibrar depois da terrível pancada. Com o coração apertado pela dor daqueles pais e pelo medo de um dia fazer parte deste grupo, me restava apenas buscar consolo em Deus.

E no meio de tudo isso, mais notícias ruins: Fabiana, que já enfrentava uma barra com o câncer no intestino, teve uma piora repentina. Foi internada às pressas e precisou submeter-se a cirurgia, afinal o câncer continuava crescendo. Ela já tinha sido incluída nos cuidados paliativos, pois segundo os médicos, não existia mais chance de cura para a doença. Era possível apenas melhorar/manter a qualidade de vida dela. Aquela piora, deixava todos muito tristes. Ninguém quer entrar numa luta tão árdua pra sair derrotado. E não ter a cura definitiva, para a grande maioria, é sinal de derrota.

Mas será uma derrota mesmo? Pelo que testemunhei, o importante é lutar dignamente. É conseguir aprender em meio ao sofrimento. É a reflexão. E isso jamais poderia ser considerado uma derrota. Derrotado é aquele que viveu e nunca foi capaz de refletir, tendo sofrido de câncer ou não.

Mas apesar de tantas notícias ruins, Ana Luiza seguia firme na radioterapia. Comecei a me preocupar com os enjoos frequentes e a falta de apetite. Eventualmente ela relatava dor de cabeça e aquilo também me deixava preocupada.

Em uma ida ao hospital, conversei com uma das pediatras, que me assegurou que eram efeitos da radioterapia. E conversando com outras mães, tudo indicava que realmente fosse isso. Me tranquilizei, como todas as mães se tranquilizam: com um olho fechado e outro aberto.

Os exames de sangue estavam ótimos, então era momento de aproveitar. Cinema, passeio no sítio, shopping. Minha fiel escudeira, vovó Aldenora, precisou ir até Boa Vista e foi prontamente substituída pela dupla vovó Eliane e vovô Calmon. Marcos também ficou alguns dias conosco, pois na próxima semana teria uma viagem a trabalho, para Argentina, e ficaria alguns dias sem poder nos visitar.

Quando os quatro avós estavam todos em SP, Ana Luiza ficava nas nuvens. Mas quando o “puí” estava conosco, ela não queria saber de mais ninguém. Adorava o “cheirinho do Puí”, adorava tirar sarro de mim, aproveitando as ideias do Marcos. Era bom demais estarmos todos juntos, essa é a grande verdade.

Ana Luiza estava nas nuvens. Super entusiasmada com as visitas, adorando os passeios e muito feliz porque seu cabelo estava crescendo de novo. Eu também estava muito feliz. Me sentia uma verdadeira privilegiada por estar tendo êxito no tratamento. Agradecer diariamente a Deus me parecia completamente insuficiente.

Diante de tantas perdas, meu sentimento ao ver minha filha super bem, era o mesmo de um ganhador da mega sena. Fomos contemplados e nenhuma alegria se comparava a esta sensação. Tudo na vida é uma questão de perspectiva.

Aproveitando a chegada do vovô Calmon, que vinha de carro, de Belo Horizonte para São Paulo, fomos passear num shopping mais distante de casa. Ana Luiza não queria saber de entrar em lojas. Foi direto para a Livraria Saraiva com o vovô, como ela sempre fazia. Eu fiquei com vovó Eliane, entrando de loja em loja a procura de algo que nem lembro o que era.

Na hora de voltar, nos perdemos e pegamos um trânsito terrível. Em meio ao trânsito caótico de São Paulo, Ana Luiza, com sua excelente percepção das coisas, apenas disse: “Ah vovô! Tudo na vida tem um lado bom e um lado ruim. O lado ruim é que estamos no trânsito, mas o lado bom é que estamos todos juntos.” Demos risadas e era impossível não concordar. Realmente, perspectiva é tudo.

Um dia, uma repórter da TV Bandeirantes me telefona e informa que o Departamento de Pediatria do Hospital, tinha lhes dado nosso contato e eles gostariam de fazer uma reportagem sobre a vida de pacientes com câncer. Sobre as vitórias e sobre a retomada da vida, após o diagnóstico.

Fomos ao hospital e filmamos. Foram quase 4 horas de “convencimento”. Ana Luiza detestava câmeras. A repórter, experiente e incrivelmente simpática, levou algumas horas para conseguir arrancar a espontaneidade de Ana Luiza. Conversaram, brincaram e finalmente ela aceitou ser filmada.

Eu estava simplesmente feliz. Faltava menos de 1 mês para o fim do tratamento e Ana Luiza estava linda, alegre e confiante. Tudo aquilo foi evidenciado na reportagem.

Naquele mesmo dia, a médica responsável pelo tratamento, que também foi entrevistada, convidou Ana Luiza para um acampamento bem divertido, organizado e patrocinado pelo hospital. A jornalista queria muito que ela fosse, pois as brincadeiras também seriam filmadas e fariam parte da reportagem.

Ela disse que não iria “de jeito nenhum”. Só iria se eu também fosse. Eu não sei dizer se aquilo me deixava triste ou feliz. Triste por saber que talvez ela tivesse algum tipo de insegurança e necessitasse da minha presença, mas feliz por saber que ela me queria sempre por perto. Mas a incentivei muito, afinal sua médica, enfermeiras e professoras do hospital estariam todas lá. Ela estaria muito mais segura com eles do que comigo.

Mas ela disse que só iria sob uma condição: Se sua amiga Beatriz, amazonense de 16 anos em tratamento de um osteossarcoma condroblástico, também fosse. E mais: dormisse no mesmo dormitório que ela.

Acordo feito, agora era esperar pelo dia 10 de junho, quando Ana Luiza passaria o final de semana inteiro longe da mamãe, pela primeira vez na vida.

Marcos voltou para Manaus, mas deixou um bilhete e uma borrifada de seu perfume no travesseiro de Ana Luiza. Ela adorou. Passou o dia com o travesseiro na mão, cheirando o perfume do papai.

Ela me perguntou porque ele tinha que ir embora e eu expliquei que ele precisava trabalhar, pois tinha que pagar as contas, afinal eram duas casas agora, a de Manaus e a de São Paulo. Além disso, expliquei que eu não estava trabalhando desde setembro e isso diminuía muito o dinheiro. Então Marcos precisava voltar pra trabalhar, enquanto a gente terminava o tratamento.

Usando sua objetividade, Ana Luiza, com cara de atrevimento, apenas disse: “Você é uma folgadinha, hein mãe? Então meu pai tem que voltar, porque você não tá trabalhando, né?!

Eu dei muita risada. A “folgada” aqui, estava cuidando da própria filha e ela ainda me culpava porque o pai precisava voltar pra Manaus. Eu expliquei que estava cuidando dela e, rindo, ela me abraçou e disse: “Eu sei mamãe! Obrigada por cuidar de mim!

terça-feira, 24 de maio de 2011

07 a 25 de Abril de 2011

Como era maravilhoso ver Ana Luiza fora do hospital! Talvez eu nunca encontre as palavras certas pra descrever a sensação de ver minha filha em “casa”, depois de 47 dias de uma internação onde ela encarou a fase mais difícil do tratamento. Debilitada, pesando apenas 20kg, muito pálida, sem cabelos, sobrancelhas e cílios, mas com um sorriso de felicidade no rosto. Era indescritível minha alegria.

Ela entrou no quarto do hotel e achou tudo superdivertido. Eufórica, saiu “vistoriando” tudo. Uma cama enorme, sala, uma (pseudo) cozinha, televisão com seus canais favoritos. Adorou as recepcionistas, as camareiras, tudo. Tudo era motivo de festa.

Após mais de um mês revezando entre um sofá e uma cadeira, finalmente eu dormiria num colchão decente. E neste dia dormimos, eu, Ana Luiza e Marcos, todos juntos na cama do hotel, onde ficamos hospedados temporariamente.

Não vou dizer que foi superconfortável, afinal dormir com duas pessoas espaçosas não é nada fácil, mas a felicidade era tão grande que no dia seguinte acordei renovada!

Durante estes últimos 7 meses, desde nossa vinda para São Paulo, em diversas ocasiões, as pessoas comentavam sobre a nossa “força”, como se ela fosse nossa. Comentavam sobre a nossa coragem, como se esse atributo também nos pertencesse. Acreditem, meus amigos. Ter um filho com câncer desarma qualquer guerreiro. Ante a possibilidade de perder um ser humano que é a razão da sua vida, você enfraquece. O medo paralisa e no mesmo instante, você pensa em entregar seu corpo pra ser sacrificado no lugar do seu filho.

E verdade seja dita: Quando os resultados do tratamento são positivos e você percebe que os esforços e sofrimentos tem valido a pena, a vontade de continuar lutando, a motivação para continuar suportando, vem automaticamente.

E por isso eu sempre afirmo: Forte de verdade é quem consegue continuar lutando, mesmo quando tudo dá errado. Corajosas são as famílias que mesmo com escassos recursos, lutam bravamente. Famílias que ficam longe de casa, morando em pensões ou hotéis de qualidade duvidosa, pois é a única coisa que podem pagar. Outros, que sem condições de pagar pensões, ficam em casas de apoio, muitas vezes em situação precária. Pais e mães desesperados que, mesmo com o filho doente, não podem se dar o luxo de apenas “parar de trabalhar para cuidar do filho”. Mães que recebem, na mesa do médico, a resposta que nenhuma de nós quer ouvir: “Infelizmente o tratamento não está surtindo o efeito que gostaríamos”.

Pais que perdem o filho para o câncer e mesmo assim continuam envolvidos na luta contra esta doença traiçoeira, são pessoas verdadeiramente fortes e corajosos. Estas pessoas são exemplo pra mim. É diante destas pessoas que me sinto uma pessoa qualquer, como a grande maioria dos cidadãos deste mundo, que pouco se envolve com o problema dos outros.

Eu tenho plena convicção que o responsável por esta couraça de coragem e força, é Deus. Pais “de verdade” são medrosos, mas Deus os transforma em super-heróis na hora certa.

Os pais do Arthur Amorim foram uma das inúmeras pessoas que nos visitaram na última internação. Eles nos trouxeram uma linda foto do Arthur, em celebração ao primeiro mês de seu falecimento. Além de nos visitar, eles nos mostraram o projeto da “Fundação Arthur Amorim”, uma entidade sem fins lucrativos, que tem como objetivo principal, ajudar famílias que vem de outros estados (principalmente do nordeste – região dos pais do Arhur) encarar um tratamento longo em São Paulo. A intenção é que a Fundação funcionasse como o primeiro contato neste “mundo paralelo”, nome que eu passei a utilizar para denominar a vida de quem recebe o diagnóstico e passa a enfrentar esta doença.

Assim que temos o diagnostico confirmado, o buraco que abre em nossos pés, muitas vezes nos impede de caminhar e buscar informações. O medo paralisa a grande maioria das pessoas e ter com quem contar e, principalmente, ter alguém que possa nos ajudar a dar os primeiros passos é fundamental.

Eu ouvi atentamente a ideia dos pais do Arthur, mas o que não me saía da cabeça era o amor que estes pais tinham pelo filho. Mesmo depois de uma batalha de 3 anos, eles perderam. Mas não perderam o amor, principalmente ao próximo. Mesmo tendo perdido um dos filhos eles ainda tinham forças para continuar lutando.

Essas famílias são fortes. Esses pais são corajosos. O que somos Marcos e eu afinal? Nossa responsabilidade aumenta a medida que vou presenciando essas coisas. Se pais que perdem o filho continuam lutando, o que falar de pais que recebem um milagre do tamanho deste que nossa família recebeu?

Realmente havia muita coisa para eu pensar. E todo momento é uma excelente oportunidade para refletir, seja ele bom ou ruim.

Apesar de Ana Luiza estar se sentindo muito bem, ela ainda estava tratando a pneumonia fúngica contraída durante o período de internação. Os médicos autorizaram a alta, mas solicitaram um tratamento em casa (home care), onde uma empresa especializada, administraria o tratamento conforme prescrição médica.

Eu estava satisfeita em poder contar com esse serviço, que foi aprovado pelo plano de saúde sem demora. Além disso, os médicos disseram que Ana Luiza poderia sair de casa, passear em locais abertos ou com pouca aglomeração, pois a imunidade estava boa. Entretanto, todas as manhãs ela tinha que receber a medicação (anfotericina B lipossomal) até a pneumonia ceder, sendo monitorada através da tomografia de tórax, que ela fazia a cada 2 semanas.

O medicamento caro e extremamente forte, deveria ser administrado em 4h, através de bomba de infusão. E aí começou o tormento. Mas para quem estava acostumado a lidar com tempestades, aquilo era apenas uma gota d'água.

Em todas as aplicações, a bomba de infusão apresentava algum problema e não funcionava adequadamente. No primeiro dia, ao invés de infundir em 4h, o remédio foi infundido em menos de 2h. Minha preocupação era que Ana Luiza apresentasse alguma reação, mas felizmente nada aconteceu. O problema persistiu por toda a semana. Mesmo tentando manter a calma, era inevitável que eu não me aborrecesse, afinal minha filha havia enfrentando uma enorme batalha, para no fim das contas, passar mal em casa. Tudo por causa de um medicamento que deveria ser aplicado por uma máquina, manuseada facilmente por um técnico devidamente treinado.

Tentei segurar minha loucura o máximo que pude, mas infelizmente, as coisas só costumam ser solucionadas, quando você resolver se comportar como louco. Só nesse momento você é levado a sério. Exigi, briguei, denunciei. Fiz tudo que podia para que eles dessem o mínimo de segurança no tratamento em casa.

No fim das contas, o que eu mais queria era que o resultado da tomografia que ela faria no fim da primeira semana de tratamento em casa, mostrasse que a pneumonia havia sido controlada e que ela finalmente não precisaria mais utilizar o medicamento e os serviços da tal empresa de home care.

No dia 15 de abril, os resultados da tomografia, mostraram a regressão da pneumonia e finalmente Ana Luiza se livrou das medicações e eu, me livrei do tormento da empresa de Home Care. Enfrentar o desinteresse ou despreparo dos profissionais da empresa, estava sendo algo realmente desnecessário a essa altura do campeonato.

Durante estes 7 primeiros dias do tratamento em casa, Ana Luiza recebeu algumas visitas, brincou bastante pelo hotel, fomos ao cinema e ela também ganhou muitos presentes. O melhor deles chegou no segundo dia em que estávamos fora do hospital: Giulia, a pequenina de 1 ano e meio, que tinha vindo de Manaus enfrentar um neuroblastoma suprarenal estava tendo êxito no tratamento. A Soraya nos explicou que o tumor havia reduzido 30% e que ela continuaria os ciclos de quimioterapia. O telefone estava no viva voz e Ana Luiza conversou com a mamãe da Giulia, marcando encontros e passeios. Ao telefone, ouvíamos a vozinha da Giulia. Foi tão bom saber que ela estava melhorando e que todo os sacrifícios próprios do tratamento, estavam tendo um resultado positivo. Isso fortalecia a todos nós e principalmente aos pais da pequena, que ganhavam uma nova motivação para continuar lutando.

Lembro perfeitamente o dia em que tomamos conhecimento da situação de Giulinha. Era fevereiro e Ana Luiza e eu, estávamos saindo do hospital, após finalizar um dos exames pré transplante autólogo. Marcos me ligou e explicou que tinha tomado conhecimento que a família de Giulia estava pleiteando uma vaga no A C Camargo e pediu que eu tentasse interceder por eles, junto ao Serviço Social do hospital.

Mobilizei algumas mães, a Cynthia e a Gracélia, também amazonenses, que enfrentam esta luta com seus filhos. Elas se envolveram e de todas as formas tentamos viabilizar a ida de Giulia para o A C Camargo, mas a falta de vagas no hospital a impediu de vir.

Depois da imensa batalha dos pais e dos familiares, o tratamento de Giulia estava assegurado no GRAAC, um dos centro de excelência no tratamento de câncer infantil.

Lembro que Ana Luiza passava pelo seu pior momento na UTI do A C Camargo, quando Marcos entrou em contato com os pais de Giulia, Soraya e Paulo, e foi até o GRAAC conhecê-los pessoalmente.

A visita foi breve, ele conheceu o hospital, tirou fotos com a família e se colocou a disposição deles para tudo. Ao sair do GRAAC, Marcos me ligou e pediu que eu o encontrasse em um Shopping próximo. Nitidamente abalado, ele tentava segurar o choro e assim que o encontrei, sentado em uma mesa da praça de alimentação, ele caiu no choro: “Ela é muito pequena, amor. Um bebezinho. E vai passar por esse tratamento terrível. Ela é um bebê ainda...”

Choramos juntos. E neste dia conversamos e refletimos muito sobre tudo isso. Ele me falou sobre a estrutura do GRAAC, onde cada andar havia sido patrocinado por uma empresa, falamos sobre a casa de apoio e das pessoas de desistem do tratamento, pela falta de dinheiro, enfim, falamos sobre o quanto nossas famílias haviam sido abençoadas por ter a chance e o privilégio de poder buscar o tratamento para os filhos.

E neste dia, decidimos que ficar de braços cruzados diante desta doença era uma vergonha. Nós não sabíamos exatamente, como e o quê fazer, mas a certeza de que faríamos algo, entranhou definitivamente em nossos corações naquele dia, quando Marcos conheceu a Giulia.

A primeira vez que falei com Soraya pelo telefone, Ana Luiza estava internada para submeter-se ao transplante autólogo. De alguma forma, tentei confortá-la e me coloquei a disposição para tudo que fosse necessário. Ela me explicou que acompanhava a história de Ana Luiza e que quando soube da doença de Giulia, foi impossível não lembrar dos relatos que faço neste blog. Saber, que de alguma forma, essas palavras que coloco aqui ajudaram e ajudam alguém, sinto que as horas investidas valeram a pena.

Ainda durante a última internação, quando Ana Luiza já havia saído da UTI e estava no quarto 320, Giulia precisou fazer os exames de imagem de acompanhamento da primeira fase de quimioterapia (que mostraram a redução do tumor) e estes exames seriam realizados no A C Camargo. Nesta data, finalmente, pude conhecer a família pessoalmente.

Conversamos, choramos, cantamos, brincamos, sorrimos muito. Foi uma tarde maravilhosa. E a partir daquele momento, Soraya e Paulo entraram para minha família. A que construí desde setembro de 2011, ligados pelo amor e pela dor de ter um filho lutando contra o câncer. Uma dor que nos modifica para sempre.

Com os resultados excelentes da tomografia de tórax, Finalmente Ana Luiza estava livre da pneumonia fúngica e poderia curtir um único final de semana de “folga”. Na segunda-feira, dia 18 de abril, seria dado início a última fase do tratamento: a radioterapia.

Durante o planejamento da radioterapia, os médicos entraram em consenso quanto as regiões a serem irradiadas. Apesar de não existir nenhum tumor sólido e o transplante autólogo ter tido a finalidade de atingir o câncer “microscópico”, a radioterapia seria mais uma arma, para combater a possibilidade de uma recidiva (volta do tumor), risco comprovadamente existente nos casos de rabdomiossarcoma.

A radioterapia seria feita na região do tumor principal (base do crânio), nos pulmões (regiões que eventualmente ocorrem recidivas) e nas vértebras da coluna, também atingidas por metástases. Ainda no período da internação, havia ficado acertado que Ana Luiza iniciaria o tratamento no crânio e quando os pulmões estivessem livres da pneumonia, ela iniciaria as aplicações no tórax.

E assim ficou acertado. Como aquele final de semana seria uma espécie de “liberdade provisória”, antes do início das sessões diárias de radioterapia, aproveitamos muito. Claro que ele não teria sido MARAVILHOSO, se a Simone não estivesse conosco.

A Simone, assim como várias anjos que apareceram em nossa vida desde setembro de 2010, é um ser humano que jamais esquecerei. Uma pessoa fantástica, alto astral, altruísta de uma maneira que nunca vi na vida. Mas mesmo cheia de qualidades aos meus olhos, ela é simplesmente uma pessoa comum, como a maioria de nós. Com suas neuras e problemas. Ela talvez nem imagine, mas suas atitudes me trouxeram inúmeros aprendizados e reflexões.

Aprendi que qualquer hora, é hora de fazer alguém feliz. Mesmo que esse alguém não faça parte da minha história. Que eu posso sim, parar por alguns minutos e ajudar uma pessoa. Que ajudar alguém, não é necessariamente fazer coisas grandiosas, mas que gestos simples são mais que suficientes. Que mesmo levando tapas na cara, é possível passar a mão no rosto e seguir sorrindo da própria tristeza.

Eu poderia dedicar um texto inteiro a Simone, um ser humano que simplesmente fala o que pensa e realiza as ideias mais absurdas pra ver o sorriso escancarado da Ana Luiza, uma dentre centenas de crianças com câncer, cuja história ela conheceu pela internet. Se o mundo tivesse mais “Simones”, a vida neste planeta não seria tão amarga. Disso eu não tenho dúvidas.

Mas como nem tudo é perfeito, Simone é corinthiana e até no jogo do Corínthians nós fomos. Ana Luiza se divertiu muito e por alguns momentos, Marcos e eu ficamos apreensivos, achando que havíamos perdido nossa filha para um “bando de loucos”. Mas o que importa é a felicidade de poder levá-la ao estádio como uma criança normal. De estar ao lado de amigos, sorrindo, se divertindo, olhando impressionada, as bandeiras e coreografias da torcida.

A Anna Gama e seus filhos, Laura, Júlia e Chico, também estiveram conosco nestes dias mais amenos, onde o tratamento nos permitia mais passeios e diversões que toda criança merece.

Poder rever o sorriso de Ana Luiza enquanto ela fazia arvorismo, a felicidade em estar perto de crianças da idade dela, conversar assuntos de crianças, assistir filmes, correr, pular, cantar... Esses momentos me faziam recuperar a sensação de normalidade, de que finalmente as coisas estavam voltando ao que nunca deveriam ter deixado de ser.

Enquanto as crianças brincavam, faziam barracas no meio da sala e tentavam dominar o mundo em frente a TV, tive o prazer de conversar com Anna e seu marido, o Zé. E nessas conversas, fica evidente que as coisas em nossa vida não acontecem por acaso. Se não fosse esta doença terrível, jamais teria conhecido tanta gente especial, como este casal. Jamais teria conhecido outras centenas de pessoas que de alguma forma trouxeram conforto ao meu coração, seja enviando mensagens, ou indo doar sangue, ou enviando presentes pelo correio. O interesse genuíno na recuperação de Ana Luiza é nítido e me emociona demais. Mas também me traz uma sensação de responsabilidade muito grande. Retribuir tanta generosidade será um desafio que levarei por toda vida.

Apenas agradecer não é suficiente. Apenas colocar os joelhos no chão e apenas agradecer a Deus com palavras sinceras, também não é suficiente. É preciso arregaçar bem as mangas e agradecer com atitudes. Talvez esta seja minha missão: Agradecer eternamente, fazendo por outras pessoas, o que recebi em forma de milagre. Ou alguém é capaz de duvidar que recebemos um milagre?

O câncer mata. Os tratamentos disponíveis funcionam para uns, mas não funcionam para outros. É uma doença traiçoeira e misteriosa. Desespera e angustia os familiares e os pacientes, mas também alucina os médicos que, após estudarem anos e anos, não conseguem dizer porque com Ana Luiza funcionou e com Arthur não funcionou, por exemplo.

Depois de receber um milagre desses, será suficiente celebrar uma missa ou culto em agradecimento? Será suficiente agradecer tudo isso e voltar a minha vida como se nada tivesse acontecido? Talvez seja suficiente para várias pessoas e eu as compreendo perfeitamente. Afinal, ao sairmos deste “mundo paralelo”, que é a rotina desgastante do tratamento, tudo que queremos é desfrutar da paz, que é ter a saúde restabelecida.

Famílias voltam a "normalidade", muitas vezes sem um tostão no bolso. Pais e mães, voltam pra casa com seus filhos, sem um emprego ou salário para sustentá-los, pois tiveram que abandonar o trabalho, para poder cuidar do filho doente. Outros até adoecem, depois de tanto estresse e desespero. Reconstruir a vida, não é tão simples e as vezes, por si só, já é um grande desafio para a maioria dos brasileiros.

Mas para mim, apenas voltar à minha vida, não será suficiente. Agradecer em oração, é uma obrigação diária, que faço diversas vezes ao dia, todas as vezes que abraço Ana Luiza, quando a vejo brincar, quando a vejo crescer.

E de coração envergonhado, reconheço que quando minha filha estava saudável e feliz, eu pouco agradecia. Eu, gozando de plena saúde, além de não agradecer, também não ajudava ninguém. Não fazia a menor ideia do que era um câncer e vivia minha vidinha, como se fosse inatingível.

Afinal, comprar um hambúrguer, cujo lucro será destinado a luta contra o câncer, não é arregaçar as mangas. É alimentar sua fome. Comprar uma rifa pra ajudar uma casa de apoio, não é arregaçar as mangas, é esperar a sorte de ganhar alguma coisa em troca.

Fazer, verdadeiramente, algo por alguém, é lutar pela causa de outra pessoa como se fosse a sua. Hoje, depois de enfrentar e conhecer este outro lado da vida, é muito mais fácil pra mim, lutar pelo combate ao câncer. Aqueles que o fazem, sem nunca ter experimentado o desespero de ter um ente querido acometido de câncer, são verdadeiros anjos.

Ninguém está livre desta doença “democrática”, por assim dizer. Ela afeta bebês e idosos, jovens e adultos, homens e mulheres, gordos e magros, fumantes e não fumantes, brancos e negros. Ao colocar sua cabeça no travesseiro, apenas agradeça por sua saúde. E se você puder fazer mais que agradecer, estará numa categoria muito diferente de pessoas, nas quais eu mesma não me incluo.

Os índices de cura aumentaram? Sim. Mas a quantidade de gente diagnosticada também. A medicina evoluiu muito e as pessoas continuam morrendo por causa do câncer. E como saber que você está livre desse mal? Eu vivia minha “vida normal” ao ser pega de surpresa, com um câncer extremamente perigoso e sombrio, em minha filha única. Essa dor levarei por toda vida.

A Páscoa estava chegando e as dezenas de presentes e chocolates que Ana Luiza ganhou também chegavam diariamente. Presentes de todo canto do Brasil e do exterior também. Chegaram lindos presentes de Frankfurt, Londres, Orlando, e também chegavam ovos de páscoa de toda parte do Brasil.

Ana Luiza estava feliz, mas vez ou outra confessava: “Mamãe, eu quero ir pra casa”. Eu a entendia perfeitamente. Mesmo com tantas atenções, tanto carinho ao nosso redor, estar em casa e poder retomar sua vida é algo que fica martelando em nossos corações. A gente só compreende e faz ideia desta sensação, quando fatalmente temos que ficar longe de casa por tanto tempo.

A semana santa foi tranquila. Livre da radioterapia no crânio por 4 dias, Ana Luiza queria mesmo aproveitar. Simone e Anna Gama foram responsáveis por momentos de muita alegria. Ana Luiza estava muito feliz em poder brincar com crianças da idade dela, em fazer passeios diferentes, conhecer novas pessoas.

A visita da Mallyn e da Amanda também foi muito divertida. A cada dia, Ana Luiza se fortalecia mais e aos poucos sua vida de criança ia sendo retomada.

Passamos a manhã de páscoa no hotel. Ana Luiza, minha mãe e eu, apenas agradecemos a Deus pelas vitórias. Saímos para almoçar e depois fomos para a casa da Gracélia, comemorar com nossa nova família, as bençãos de ter a vida de nossos filhos renovada. De fato, esta páscoa foi muito importante para todos nós. Mesmo distantes dos familiares, foi um momento muito agradável ao lado de boas pessoas e que naquele momento, estavam no mesmo espírito de gratidão que nós estávamos.

No dia seguinte, voltaríamos para o apartamento dos tios do Marcos e poder voltar pra lá era um conforto que veio em boa hora. Comer comida de restaurante diariamente era terrível e Ana Luiza não estava conseguindo se alimentar adequadamente, mesmo com toda a criatividade de sua avó. “Eu quero comida de fogão, não essas comidas de restaurante”, dizia Ana Luiza, como se no restaurante usassem outro equipamento para cozinhar... mas eu a compreendia e com certeza vocês também a compreendem.

Mais uma vez a Simone estava conosco. Ela nos auxiliou com a mudança. Na verdade, parecíamos retirantes fugindo da seca. O carro, uma pick up, estava abarrotada de malas, mochilas, caixas e sacolas. Durante a última internação, Ana Luiza ganhou tantos presentes, que foi uma dificuldade terrível trazer tudo de volta ao apartamento.

Feliz da vida, depois de 2 meses longe de “casa”, Ana Luiza enfim comeria uma comidinha da vovó, preparada com muito amor. O que daria a ela, ânimo para continuar a última fase do tratamento: a radioterapia do crânio e do tórax.