Marcos voltou pra Manaus com diversas coisas de trabalho pra resolver, mas com a certeza de que em breve, nós três embarcaríamos juntos no Aeroporto de Guarulhos, rumo a Manaus. Na sua próxima vinda a SP, provavelmente já seria o grandioso momento de voltarmos todos juntos pra casa. Felicidade era pouco para explicar o que passava em nossos corações. Enquanto isso, a “folgada” aqui continuava por mais alguns dias, cuidando do tesouro da família, que em poucos dias poderia voltar pra casa.
Faltavam apenas 20 dias para o fim da radioterapia do tórax. Somente 20 dias era o que faltava para o fim de um tratamento que deveria ter sido de pelo menos 2 anos, na melhor das hipóteses.
Exatamente no dia 20 de junho de 2011, após 09 meses do diagnóstico, Ana Luiza concluiria o último procedimento terapêutico e teria conseguido o feito de ter completado todo o tratamento muito antes do imaginado e com remissão completa da doença!
O tumor de 5cm na base do crânio, os diversos tumores espalhados pelos dois pulmões, as lesões cancerígenas em duas vértebras da coluna dorsal, o tumor no osso da perna e a infiltração do câncer na medula óssea. Tudo isso havia desaparecido em 9 meses. Milagres que testemunhei na companhia de dezenas, talvez centenas de pessoas que nos acompanharam.
No dia 20 de setembro de 2010 ela fez a ressonância que diagnosticou, precisamente, o rabdomiossarcoma e, 09 meses depois ela estaria livre dele. Difícil acreditar. Mas eu, Carolina, aos 28 anos, havia presenciado dezenas de milagres nestes últimos meses. O maior deles, sem dúvida, era o fim do tratamento, com Ana Luiza sem nenhuma sequela, sem nenhum rancor e sem nenhum trauma. Uma criança de 7 anos, que enfrentou um tratamento super pesado, doloroso e simplesmente continuou a criança de 7 anos que sempre foi.
Nestes nove meses minha filha nunca queixou-se dos procedimentos, por mais dolorosos que eles fossem. Nunca deixou de ser carinhosa e educada com todos os profissionais, que por força do dever, precisavam submetê-la aos mais terríveis procedimentos.
Cada coleta de sangue, cada injeção de contraste, cada ciclo de quimioterapia, cada sessão de radioterapia, cada internação... em todos os momentos, minha filha, meu orgulho, o amor da minha vida, só demonstrava o quanto ela era especial. Carinhosa com as enfermeiras, com as recepcionistas e com os médicos. Cumprimentava a todos: seguranças, zeladores, atendentes, professoras. Ela gostava do hospital, mesmo tendo passado os piores momentos de sua infância naquele lugar. Nada de mágoa, nada de traumas. Com muita tranquilidade, ela esticava o bracinho pra coletar sangue e apenas dizia para as técnicas de enfermagem: “Eu vou contar até três, tá? Aí você coloca a agulha... Um, dois, três e já!” Ela respirava fundo, segurava a respiração e assim que o sangue aparecia na seringa ela soltava o ar. “Ufa... Nem dói muito. Mas ainda bem que você é fera pra tirar sangue, né tia?” Dizia ela, com um sorriso no rosto.
Ana Luiza entrou e saiu do tratamento sendo a mesma criança de sempre. Com a diferença que tornou-se mais madura, aprendeu novas palavras, novos significados, conheceu novas pessoas. Aos 7 anos, ela mostrou uma maturidade espiritual que envergonha muita gente. A resignação, a confiança e certeza de que tudo ficaria bem.
Ao olhar pra minha pequenina, eu não via somente minha filha única, uma criança extremamente amada pela família e amigos. Eu enxergava uma mocinha vitoriosa, segura e confiante, cuja doença mais temida do mundo, não foi capaz de destruir, apenas de fortalecer.
Mas apesar de presenciar muitos milagres, nunca consegui me sentir completamente tranquila. Por alguns momentos, até pensei que eu não tinha fé. Que deveria apenas aceitar o milagre e pronto. Mas a verdade é que nunca deixei de me preocupar e de estar preparada para enfrentar o pior.
Me lembro que das centenas de e-mails e mensagens que recebi, em diversas delas, me enviavam algum trecho da bíblia. O que mais recebi, é um trecho bastante conhecido: “Tudo posso Naquele que me fortalece”, enviado sempre com o intuito de me encorajar e não perder a fé mesmo diante das piores circunstâncias. Outros enviavam esse mesmo trecho, interpretando que com Deus, podemos tudo, como se fôssemos, apenas pela fé, merecedores de bençãos sem fim.
Mas “tudo”, em minha opinião, significa, literalmente, TUDO. Eu poderia estar feliz com os milagres recebidos, mas eu também teria que estar preparada para enfrentar as dificuldades, caso elas insistissem em surgir. E independente da situação, minha fé deveria ser meu suporte.
Eu estava feliz? Sim. Mas de olhos bem abertos. Eu já estive plenamente feliz há 9 meses atrás e eu, melhor do que muita gente, sei o que é ver a felicidade ruir diante da gente. Eu sei muito bem o que significa colocar um filho lindo, saudável e inteligente para dormir num dia e, 6 dias depois, embarcar em uma UTI aérea, para buscar tratamento para um dos tipos de cânceres infantis mais agressivos que se tem notícia.
Enfim, eu não podia subestimar o “inimigo”. Eu deveria estar agradecida por tantos milagres, mas precisava estar atenta. Minha filha não estava se tratando de uma pneumonia. A doença era um câncer raro, agressivo e avançado, cujo tratamento ainda não está completamente estabelecido.
Apesar do fim do tratamento estar próximo, Ana Luiza só poderia voltar pra Manaus definitivamente, após os exames de imagem (ressonância magnética da coluna e do crânio, tomografia computadorizada do tórax e cintilografia óssea). E estes exames só poderiam ser feitos após 01 mês do último dia de tratamento, portanto, só voltaríamos para Manaus, definitivamente, em julho de 2011.
Com a autorização da médica, agendei o exames de Ana Luiza para o dia 18 de julho, véspera do aniversário dela. Assim, poderíamos comemorar o aniversário dela em São Paulo e logo depois dos resultados dos exames, finalmente voltaríamos pra casa.
Este período entre a última sessão de radioterapia e os exames finais, nós programávamos passar em Belo Horizonte, com os familiares do Marcos. Todos lá estavam muitos ansiosos, aguardando a chegada da pequena. Vovô Calmon, especialmente, aguardava a pequena no sítio em Lagoa Santa.
Há meses Ana Luiza falava em nadar na “piscininha” de água quente do sítio. Ela adorava a “piscininha”, um ofurô delicioso que o vovô mandou construir ao lado da “piscina grande”.
Em uma das consultas com a Dra. Cecília, perguntamos se ela poderia entrar na água depois do tratamento, pois o vovô tinha prometido trocar a água, lavar bem o ofurô e deixar de uso exclusivo para ela. Nestas condições, Dra. Cecília autorizou o banho de piscina e a pequena, gritando de felicidade, saiu correndo do consultório antes mesmo da consulta terminar, gritando: “Vovô, ela deixou!!! Vou poder entrar na piscininha!”
Enquanto eu explodia de alegria por ter chegado ao fim do tratamento, pelas vitórias alcançadas diante dessa doença terrível, minha pequena estava feliz porque poderia tomar banho de piscina. O quão profundo é isso? Ana Luiza, mais uma vez, nos mostrava o que era felicidade. Felicidade era um banho de piscina na casa do vovô.
Com o fim da radioterapia e o mês inteiro de espera até a realização dos exames de imagem, teríamos bastante tempo para passear com ela, organizar uma festinha linda pra comemorar o seu aniversário e “desmontar o acampamento” em São Paulo.
Meus pais chegaram de Boa Vista e meus sogros voltaram para Belo Horizonte. Estas 4 pessoas nunca me deixaram sozinhas. Sempre participaram de tudo e sempre se colocavam a disposição para tudo. Era maravilhoso poder contar com alguém, principalmente quando esse “alguém” se preocupava genuinamente conosco. Meus pais e meus sogros foram fundamentais nesse processo, assim como a dezena de amigos e familiares que estiveram ao meu lado.
Agendei todos os exames, deixei tudo acertado e assim, poderíamos aproveitar o mês de junho inteiro para organizar nossas coisas e enviá-las para Manaus, além é claro, de preparar uma linda festa de aniversário para Ana Luiza.
Todo ano, ela não tinha dúvidas sobre o tema que escolheria para o aniversário. Se houvesse dúvida, era entre um tema e outro. Mas até aquela data, Ana Luiza simplesmente não sabia o que escolher. Sugeri diversos temas, mas ela estava completamente desinteressada. Diariamente eu insistia pra saber o que ela gostaria, mas ela sempre se mostrava indiferente ou incerta sobre a festa. Ela estava feliz, mas não parecia empolgada com o aniversário.
Certo dia, Ana Luiza decidiu que o tema do seu aniversário seria um jardim encantado. Achei a ideia ótima. Ela sempre gostou de flores e estando em SP, poderíamos usar toda a criatividade para decorar uma festa linda.
Várias pessoas colocaram suas casas a disposição para comemorarmos o aniversário dela, mas por escolha da Ana Luiza, comemoraríamos na Pizzaria que ficava ao lado do apartamento onde estávamos hospedadas. Os donos, Arthur e Rosana, desde nossa chegada em SP, nos receberam com muito carinho e Ana Luiza, especialmente, conquistou o coração desse casal.
Decidido o tema e o local da festa, eu esperaria o tratamento terminar e começaria a organizar tudo. Não seria apenas um aniversário de 8 anos, mas uma comemoração ao sucesso do tratamento e uma linda despedida de agradecimento aos amigos que fizemos em SP, afinal já estaríamos autorizados a voltar pra Manaus.
Ana Luiza estava bem. Eventualmente queixava-se de dor de cabeça e acordava nauseada. Eu conversava com os médicos e todos eram unânimes em concordar que eram efeitos da radioterapia. Aqueles sintomas incomodavam a pequena, mas ela sempre tirava por menos: “Não é nada, mãe! É só um enjôo e você fica toda preocupada! Credo!” Ela realmente detestava drama. Não queria deixar ninguém preocupado e sempre minimizava tudo. Meu coração não estava tranquilo, mas ela realmente parecia tão bem.
Ana Luiza vinha se alimentando mal. Comendo pouco e sempre acordando muito enjoada. No dia 06 de junho, ela acordou e não conseguiu comer nada. Nem no café da manhã, nem no almoço. Tudo que ela tentava comer, vomitava.
Fomos para o hospital para mais uma sessão de radioterapia e alguns minutos antes de entrar na sala de radioterapia, ela teve um mal estar. Fiquei preocupada e liguei pro Marcos. Desde o dia em que ele voltou pra Manaus, vinha se preparando para uma viagem a trabalho para Argentina. Ele estava tranquilo quanto a viagem, pois Ana Luiza estava bem. Seria uma viagem curta e logo ele estaria de volta.
Assim que comentei sobre as náuseas que ela vinha tendo ele me tranquilizou e disse que acreditava que eram somente efeitos da radiação, exatamente como os médicos disseram. Ele aproveitou e disse que a viagem para Argentina estava confirmada, apesar do vulcão chileno que havia entrado em atividade e estava causando o cancelamento de alguns voos.
Meu coração estava apertado. Sabe-se lá porquê.
Na saída do hospital, encontrei com um casal e seu filho de 2 anos, vindos do interior do Amazonas para tratamento em São Paulo. O pequeno Alan, tinha uma suspeita de rabdomiossarcoma, o mesmo câncer de Ana Luiza e seus pais vivenciavam aquele momento inicial da confirmação do diagnóstico e início do tratamento. Estavam hospedados na Casa Hope e uma semana antes, meu pai e eu tínhamos ido até lá, levar algumas roupas de frio pra eles.
Um casal humilde, de coração enorme e bastante simpático. Os pais do Alan, vindos de uma cidade chamada Manacapuru, do interior do Amazonas, tiveram uma peregrinação completamente diferente da nossa.
Ana Luiza, Marcos e eu, estávamos na UTI do hospital A C Camargo, após 6 dias do primeiro sintoma de Ana Luiza. Estávamos hospedados em um apartamento confortável e a todo momento algum familiar vinha nos visitar. O Alan só conseguiu chegar aqui depois de meses de espera. Com muita dificuldade e com a ajuda de outras pessoas, eles conseguiram vaga em uma casa de apoio e contavam somente com uma ajuda de custo fornecida pelo governo, de pouco mais de 700 reais. Ajuda esta, dada aos cidadãos que precisavam sair de seu domicílio em busca de tratamento. Os parentes não tinham a menor condição de acompanhá-los ou ajudá-los como eu vinha sendo ajudada até então.
Isso era injusto. Os dois são crianças, amadas por seus pais e familiares e ambos tinham uma suspeita diagnóstica terrível. Diferente de Ana Luiza, Alan não tinha roupas de frio guardadas para quando viajasse para um lugar de temperatura mais baixa, mas como a minha filha, ele estava disposto a encarar o tratamento, sempre sorridente e esperto. Os pais do Alan também não estavam preparados para enfrentar os meses mais frios de São Paulo, mas assim como Marcos e eu, eles estavam apavorados diante da incerteza do diagnóstico e do medo de que algo ruim acontecesse ao filho único.
Apesar de sermos pessoas diferentes, vindas de famílias e lares diferentes, o câncer colocou todos nós, “no mesmo balaio”. Estávamos todos enfrentando o mesmo problema, com os mesmos medos e com as mesmas armas. A vitória ou a derrota, era algo incerto, mas a luta era o que nos igualava. Ou pelo menos deveria ser.
Quantas crianças, neste exato momento, estão tendo as chances que Ana Luiza e Alan tiveram? Quantas estão tendo as mesmas condições de tratamento que a Giulia, a Bia, o João Vitor ou o Rafael tiveram? Todos estes amazonenses que tive o privilégio de conhecer, tiveram acesso ao melhor tratamento possível em 2011. Mas muito longe de suas casas. Enfrentando a distância, as diferenças e as dificuldades inerentes a um tratamento longo, difícil, doloroso e, ainda por cima, distante de suas famílias e amigos.
Desde o início, assim que tomamos conhecimento da história deles através dos médicos do A C Camargo, tentamos ajudar de alguma forma. Passar pelo problema do câncer em si, já é terrível. Acumular problemas e dificuldades paralelos ao câncer, torna tudo ainda mais desesperador.
Ana Luiza e Alan brincavam na entrada do hospital enquanto eu conversava com os pais dele. Que família linda. Pena que nos conhecemos através da doença de nossos filhos. Um jovem casal, sorridente e confiante. E com muita fé e esperança de que o filho ficaria bem. Isso é o fundamental.
Ana Luiza e eu saímos do hospital, pegamos um táxi e fomos ao shopping. Fomos somente nós duas. Um passeio que sempre adorei. Somente eu e ela. Conversar, rir, abraçar, ensinar, aprender. E acima de tudo, ter essa filha-amiga sempre ao meu lado, era tão bom.
Ana Luiza não estava bem. Estava nauseada e a todo momento sentia vontade de vomitar. Mas mesmo assim ela quis passear. Jantamos exatamente o que ela queria: asinhas de frango crocantes, com batata e suco de laranja. Mal ela começou a comer, ficou nauseada e correu para o lavabo. Não deu tempo de chagar ao banheiro. Ela vomitou tudo. Os garçons olharam estranho pra gente. Em dúvidas, ficaram chateados com a sujeirada que fizemos no lavado. Mas eu não pude fazer melhor. “Pelo menos ela não sujou o salão do restaurante!” Pensei eu.
Voltamos para a mesa. Ana Luiza tirou o gorro e o cachecol que estava usando. Respirou fundo e com uma carinha de quem estava chateada consigo mesma, disse: “Posso pedir outro frango? Quero tentar comer de novo, mamãe!”
O garçom veio nos atender e vendo a carequinha dela, parece ter mudado na mesma hora a atitude conosco. Ficou sem graça, perguntou se estava tudo bem, se precisávamos de algo. Ana Luiza, com o seu jeito resolvido, apenas disse: “Sim, precisamos de algo: de outro frango crocante porque o primeiro eu vomitei todo. É por causa da radioterapia”
Eu não sei. Naquele exato momento me deu uma vontade de chorar. Um aperto no coração. Ela falava com tanta naturalidade e encarava tudo com tanta tranquilidade, que me deixava envergonhada. Quando o frango chegou e ela voltou a comer, eu tentei disfarçar minhas lágrimas. Ana Luiza era dura na queda. Se me visse chorando, me daria uma bronca. Então disfarcei.
Comecei a mexer na bolsa e enxuguei as lágrimas que insistiam em querer cair. Eu queria tanto que ela ficasse boa. Não aguentava mais vê-la sofrendo aqueles efeitos. Aquilo me destruía, apesar de toda a força que ela tinha. Eu só queria voltar pra casa e retomar nossa vida. Ela estava linda, com os cabelinhos voltando a nascer, os cílios e sobrancelhas bem fartos como sempre foram. E eu só queria que ela ficasse livre desse tormento que é o câncer e o tratamento disponível para tentar se livrar dele.
Ela terminou de comer, nada de vômitos ou indisposição. Fomos ao cinema e ela quis pipoca e suco de uva. Comeu mais um pouco e a comida ficou na barriga. Àquela altura, tudo que ela quisesse (e conseguisse) comer, era lucro.
Saímos tarde do cinema. Liguei para os meus pais avisando que já estávamos no táxi de volta pra casa. Liguei pro Marcos e ele se preparava para ir o aeroporto. Até então o voo estava confirmado e ele faria o embarque para Buenos Aires, com conexão em Guarulhos-SP.
Chegamos em casa e Ana Luiza estava bem. Contou sobre o filme para a vovó, disse pro vovô que comeu bem, fez as compressas com chá de camomila na região irradiada do tórax e passou a “baba de planta” (unguento/gel a base de Aloe Vera, que Ana Luiza detestava usar, porque segundo ela, parecia saliva).
Coloquei Ana Luiza para dormir e fiquei com o pensamento longe. Uma inquietação sem fim. Não conseguia dormir de jeito nenhum e tarde da noite, Marcos me liga pra dizer que não tinha embarcado, pois os voos haviam sido cancelados em virtude do vulcão no Chile. Ele, provavelmente, conseguiria embarcar no dia seguinte, mas me manteria informada.
Depois de algumas horas de insônia, algo incomum pois eu realmente dormia bem, finalmente caí no sono. Ana Luiza havia pedido pra dormir com minha mãe e eu acabei dormindo no escritório.
No dia seguinte todos nós acordamos e Ana Luiza continuava dormindo. Marcos ligou, disse que estava no trabalho, esperando uma definição da companhia aérea. Fui tomar banho e assim que saí do banheiro enrolada na toalha, Ana Luiza acordou gritando. Minha mãe correu pro quarto e Ana Luiza, sem conseguir falar direito, chorava muito, dizendo coisas incompreensíveis.
Quando cheguei no quarto, Ana Luiza estava no banheiro da suíte vomitando e gritando de dor. Minha mãe chorando desesperada, segurava e apoiava a cabeça dela com a mão.
Ana Luiza estava sentindo muita dor na cabeça. Gritava segurando a cabeça e dizia que teve um sonho terrível, que uma pessoa dava um tiro na cabeça dela e ela morria. Minha mãe soluçava e mal conseguia falar.
Tirei minha mãe do banheiro e pedi que ela fosse até a cozinha pegar os remédios da Ana Luiza e tentasse se acalmar. Segurei minha pequena no colo que, muito fraca, só chorava e dizia que estava com muita dor de cabeça e sono.
Coloquei ela no colo e a carreguei até o outro quarto, deitei-a na cama e dei os remédios de náusea e dor. Ela vomitou tudo de novo e, sonolenta, voltou a dormir. Eu me vesti apressadamente, liguei para o Marcos, contei o que aconteceu e ele disse pra irmos para o hospital.
Ana Luiza não acordava de jeito nenhum. Eu sentei ao lado dela e fiz a única coisa que podia: conversei com Deus.
Como toda oração que nós duas fazíamos juntas, primeiramente eu agradeci a Deus, agradeci pela chance de passar mais um dia ao lado dela, pelo alimento que nunca nos faltou e por sempre estarmos cercadas de pessoas que nos amavam. Depois de agradecer, pedi muito a Deus que Ele protegesse Ana Luiza, que a livrasse dessa doença e de qualquer dor. E que me desse forças pois eu estava com muito medo.
Ana Luiza continuava dormindo pesadamente e eu não queria acordá-la e acabar estimulando mais uma crise de vômitos e dor. Esperei alguns minutos e já não me aguentando de desespero, fomos para o hospital, meus pais, Ana Luiza e eu.
Ao chegar lá, carregando-a no colo, pois ela mal conseguia ficar em pé, fui direto para a emergência pediátrica. Meus pais vinham ao meu lado, carregando bolsas e documentos. O olhar de aflição dos dois me consumia. Eu nunca suportei vê-los angustiados. As duas pessoas que me colocaram no mundo, as duas pessoas que me amam incondicionalmente. Vê-los sofrer sempre me destruiu. E eu tinha que ser forte, para deixá-los fortes também.
A enfermeira me avistou de longe e, preocupada, me chamou para acomodar Ana Luiza num leito confortável na enfermaria. Ela gostava muito de Ana Luiza. Mas ela era sempre muito atenciosa, prestativa e carinhosa com todas as crianças e seus pais. Profissionais assim, fazem toda a diferença.
Aguardei a chegada dos médicos e rapidamente uma delas apareceu. A Dra. Fabiana, tão querida por Ana Luiza, foi quem nos atendeu naquela tarde. Contei o ocorrido, a fortíssima dor de cabeça, os muitos episódios de vômitos, a sonolência e a fraqueza. Ela solicitou exames de sangue, prescreveu medicamentos e sempre muito serena, nos tranquilizou dizendo que os sintomas eram compatíveis com a exposição à radiação (tratamento de radioterapia), mas que os exames de sangue poderiam apontar alguma outra causa, por exemplo, uma anemia ou perda de eletrólitos, justificados pelos intensos episódios de vômitos.
Enquanto aguardávamos, a Dra. Fabiana permanecia sempre por perto. Reexaminou Ana Luiza algumas vezes, verificou as pupilas dela, queria saber se ela estava mais “esperta”, mais acordada. Mas verdade seja dita: Ana Luiza só dormia. Os vômitos passaram, mas a sonolência só aumentava. E ela ficava com as mãos na cabeça o tempo todo. Sem dúvidas algo a incomodava demais. E esses sintomas “vômito/sonolência/dor de cabeça” me atormentavam desde setembro de 2010...
A Dra. Fabiana veio conversar conosco e disse que havia solicitado uma ressonância magnética do crânio. Ana Luiza, com a mão na testa e apenas com um olho aberto disse: “Vou ter que ficar internada?” A Dra. Fabiana apenas disse: “Você vai ficar internada somente por um dia, até sair o resultado da ressonância magnética. Amanhã cedinho, você vai ser a primeira paciente que vou dar alta. Pode ficar tranquila.”
Eu estava preocupada demais, mas a Dra. Fabiana disse que o exame era apenas para descartar algo mais sério, um exame padrão que deveria ser feito em virtude do quadro clínico que ela apresentava, mas que Ana Luiza estava bem e que com toda certeza no dia seguinte, de manhã, já receberia alta.
Eu não sei se ela estava falando a verdade ou se estava tentando amenizar meu desespero, mas a certeza é que ela conseguiu me acalmar um pouco. Só um pouco mesmo.
Meus pais estavam na lanchonete do hospital. Tinham ido buscar um café pra mim. Assim que chegaram expliquei que Ana Luiza ficaria internada para aguardar o resultado da ressonância que seria submetida no fim da tarde. Eu vi a preocupação nos olhos dos meus pais. E tentava, desesperadamente, passar a maior tranquilidade do mundo pra eles dois. Pedi que eles fossem em casa buscar uma roupa mais confortável pra Ana Luiza e nossos itens de higiene pessoal.
Quando eles finalmente saíram da enfermaria, liguei pro Marcos e falando baixinho expliquei que ela ficaria internada pra aguardar o resultado da ressonância que faríamos naquela tarde.
Segurando o choro no telefone, eu disse que estava muito apreensiva e Marcos mais uma vez tentava me tranquilizar. Ele não tinha dúvidas de que não era nada grave. Argumentou dizendo que ela ainda estava terminando o tratamento, que havia feito uma ressonância do crânio há pouco tempo por causa da radioterapia e não tinha aparecido nada. Portanto eu deveria tentar ficar tranquila, pois com certeza não era nada demais. E por fim completou: “Estou indo pro Aeroporto de novo hoje a noite e, se a companhia aérea liberar, embarcarei para Guarulhos de madrugada e devo ficar no aeroporto durante toda a manhã, aguardando o voo pra Buenos Aires. Assim que eu descer no aeroporto de SP amanhã, ligo meu celular e você vai me dando notícias.”
A enfermeira veio nos buscar para realizar a ressonância magnética. Ana Luiza foi sentadinha na cadeira de rodas, ainda muito sonolenta. Ela foi posicionada no tubo e como sempre, ficava imóvel, bem quietinha, esperando o exame terminar. Aplicaram o contraste intravenoso e concluíram o exame. Sem se queixar, ou se lamentar, Ana Luiza apenas submeteu-se ao exame.
Eu, sem poder fazer nada, completamente impotente, apenas pedia que Deus nos protegesse. Olhar para a cara dos médicos era algo que eu não tinha coragem há muito tempo. Não perguntei absolutamente nada. Apenas tirei ela da maca, a abracei bem forte e fui levando-a de volta a enfermaria da emergência no colo. Fui cheirando e abraçando ela bem forte. Eu estava sentindo um medo tão grande!
Voltamos para a enfermaria para aguardar a liberação do quarto no 5º andar. Ana Luiza ficou acordada e falou: “Poxa, nem vamos poder assistir o Disney on Ice, né mãe? Será que a moça vai ficar triste por que nós não vamos?” Algumas semanas antes, uma jovem mãe do Rio de Janeiro, a Rérica, que acompanhava o caso da Ana Luiza, nos enviou ingressos para assistir este espetáculo na pista de gelo e o evento era exatamente naquele dia. Eu disse que teríamos outras oportunidades e que com toda certeza, a moça entenderia.
Ela fechou os olhos, colocou a mão na testa e parecia voltar a dormir. Eu, sentada ao lado dela, apenas segurei nas suas perninhas, beijando-a e acariciando-a. Em minha cabeça, apenas pensava: “Minha filha... Que vontade que nada disso tivesse acontecido em nossas vidas... Esse medo, esse pesadelo sem fim! Que doença terrível!”
Assim que liberaram o quarto no 5º andar, as enfermeiras nos levaram até lá. Ana Luiza acordou e assim que chegou no quarto, quis assistir sua novela preferida.
Sempre tivemos TV por assinatura em casa e ela dificilmente assistia os canais abertos. Como no apartamento onde estávamos hospedados não havia TV por assinatura, Ana Luiza “descobriu” a TV Globo e suas novelas, a Record e especialmente o SBT. Diversas vezes tive que ir até a agência dos Correios próxima de casa, para comprar a Tele Sena e na hora que os números apareciam na televisão, ela pedia que todos fizessem silêncio e anotava os números religiosamente. Sabia toda a grade de programação do SBT, o nome dos programas, o horário que passava cada um deles.
Ela assistia com mais frequência o SBT, mas no fim da tarde, assistia a novela Cordel Encantado e todos que estivessem na sala, tinham que fazer total silêncio. Marcos nunca permitiu que ela assistisse novelas e em Manaus era mais fácil, afinal ela tinha outras opções. Mas em SP, sem poder sair muito de casa, era quase inevitável. Ana Luiza sabendo que o Marcos detestava que ela assistisse novela, pediu com muito carinho: “Deixa, Puí? Só essa novela? Por favor!!” Impossível dizer não, não é mesmo? E o Marcos autorizou, mas ela assistia sempre supervisionada.
Meus pais chegaram, assistimos à novela todos juntos. Ana Luiza conseguiu se alimentar, meus pais foram pra casa, angustiados, mas ela passou a noite bem.
No dia seguinte, bem cedo, às 6h, Marcos meu ligou. Tinha acabado de chegar no aeroporto de Guarulhos e aguardaria o embarque para Buenos Aires, por volta de 9h da manhã.
Pouco tempo depois Ana Luiza acordou queixando-se de dor na cabeça. Ela não conseguia sequer abrir os olhos. Chamei a enfermeira e expliquei que aguardávamos o resultado da ressonância e que eu gostaria de conversar com a Dra. Fabiana.
Ana Luiza foi medicada, mas não parecia fazer efeito... ela continuava sentindo dor. Aquilo me desesperava. Ela pediu pra assistir desenhos e eu liguei a televisão bem baixinho.
Meus pais ainda não tinham chegado. Ainda era cedo e eu queria muito que a Dra. Fabiana chegasse antes deles.
Nada dos médicos, nada da dor de cabeça diminuir, nada de eu conseguir disfarçar meu desespero. Ana Luiza assistia televisão e eu apenas segurava sua mãozinha. Marcos ligou. Queria saber o resultado da ressonância. E nada ainda. Ele disse que já estava na sala de embarque e que logo embarcaria e eu fui ficando cada vez mais angustiada.
Poucos minutos depois, uma das enfermeiras entra no quarto e diz que os médicos queriam conversar comigo lá fora e que ela ficaria com Ana Luiza.
Minhas pernas tremeram. Mal conseguia respirar. Beijei Ana Luiza e disse que já voltava. Ela me deu um beijinho.
Abri a porta do quarto e de longe avistei a Dra. Cecília e a Dra. Viviane, bem em frente ao posto de enfermagem. Elas conversavam, com o rosto apreensivo. E a cada passo que eu dava, eu me tremia ainda mais. Na mesma hora, me lembrei das palavras da Dra. Cecília: “Se o câncer voltar, não teremos mais nenhum tratamento”.
Eu tentava tirar esses pensamentos da minha cabeça. Assim que eu cheguei perto delas e antes mesmo que eu conseguisse cumprimentá-las, a Dra. Cecília me fulminou com suas palavras: “Carol, não tenho notícias boas. Infelizmente temos uma recidiva no sistema nervoso central, que está tomando toda a região meníngea. Fui conversar com o diretor da área de imagem e infelizmente, não temos dúvidas de que seja uma recidiva.”
Apenas coloquei as mãos na cabeça e disse: “Que merda, Doutora! Ô meu Deus, que desespero!!” E caí em um pranto tão desesperador, que mal conseguia enxergar as coisas direito. Me deu uma náusea tão forte, uma tontura, uma vontade de gritar...
As médicas apenas me olhavam, com um semblante de tristeza profunda! Recebi um abraço e tentava me recompor, mas a vontade que eu tinha era de me atirar no chão! “E agora, doutora? E o que a gente pode fazer? Existe alguma alternativa? Alguma radioterapia disponível ou alguma quimioterapia?”
A médica apenas disse que conversaria com a equipe, mas que infelizmente não existiam mais armas para combater a doença. Não era possível fazer cirurgia, e a região a ser irradiada por uma possível radioterapia, seria muito grande, pois o tumor tomava toda a área das membranas que recobriam o cérebro.
Enquanto ela falava, pedi um minuto para ligar para o Marcos, pois ele estava embarcando para a Argentina e eu precisava explicar o ocorrido.
Marcos, que estava indo para a fila de embarque, atendeu no primeiro toque e eu apenas disse: “O câncer voltou!” Sem saber explicar direito, pedi que a dra. Cecília conversasse com ele.
Enquanto eu enxugava as lágrimas e tentava me recompor do desespero, a médica explicava novamente para o Marcos, a situação de Ana Luiza.
Ela me passou o telefone e Marcos disse que não embarcaria mais. Que tentaria pegar a bagagem de volta e que tomaria um táxi até o hospital. E foi o que ele fez. Saiu desesperadamente da fila do embarque, procurou alguém da companhia aérea, explicou a situação, pegou a bagagem de volta e foi direto para o hospital. Ele disse que conversaríamos com os médicos com calma, pois ele ainda estava incrédulo e acreditava que tudo poderia ser um terrível engano.
Eu precisava voltar para o quarto. Precisava me recompor e encarar Ana Luiza. As médicas mudaram as medicações dela, deram analgésicos mais fortes e foram explícitas com a equipe de enfermagem: “Ana Luiza não pode sentir nenhuma dor!”
Voltei para o quarto e Ana Luiza continuava deitadinha. A enfermeira, como se tivesse sido treinada pra esses momentos, apenas me abraçou e sem dizer absolutamente nada, saiu do quarto. Ana Luiza me viu e esticou a mãozinha em minha direção, como ela sempre fazia. E eu segurei sua mão e caí no choro.
“Me perdoa, filha!” Era o que eu dizia... “Me desculpa por chorar! Mas eu preciso conversar com você e estou muito triste.”
Ana Luiza apenas disse: “O que foi, mamãe?” E eu expliquei que o câncer tinha voltado e que por isso eu estava chorando. Ela, com toda sua força, sem derramar uma lágrima sequer, enfaticamente disse: “Mãe, o câncer não voltou!”
Eu expliquei que tinha voltado sim, que as médicas haviam conversado comigo lá fora e que elas não iam inventar uma coisa dessas. Então ela olhou pra televisão, olhou de novo pra mim e com muita calma apenas disse: “Se eu fiquei boa uma vez, vou ficar boa de novo. Deus me ajudou uma vez e vai me ajudar de novo, mãe. Não precisa chorar.”
Quando ela falou isso, me senti um verme. Uma pessoa completamente sem fé, sem otimismo. Chorei mais ainda. E ela disse: “Mãe, eu que estou doente, deitada aqui nessa cama, não estou chorando! Por que você está chorando? Não precisa chorar.”
E ao escutar aquelas palavrinhas da minha filha, chorei ainda mais. E pela primeira vez, abri meu coração pra ela. Disse que eu estava chorando porque não aguentava mais essa doença. Não queria que minha filha passasse por todo o sofrimento de novo. Não aguentava mais os remédios, os exames, as consultas. Que tudo que eu mais queria ela vê-la curada de uma vez por todas. E que o fato da doença ter voltado, me deixava muito triste e por isso eu estava chorando.
Enquanto eu falava, Ana Luiza se emocionou e começou a chorar. E quando eu terminei de falar, ela esticou os bracinhos e me deu um abraço bem forte. Disse que me amava muito. E olhando pra mim ela disse: “Só vou deixar você chorar essa vez, viu? Chega de choro, mãe. Eu vou ficar boa.”
Escutando aquele ser de 7 anos de idade, que em poucas palavras me mostrou o que é ser forte, não tive outra opção: enxuguei as lágrimas, lavei o rosto, respirei fundo e fiquei esperando meus pais chegarem.
Eu tinha que ser forte para dar a notícia pra eles. Da mesma maneira que minha filha foi forte pra mim, eu teria que ser pra eles.
Meus pais chegaram, trazendo lanchinhos pra gente, animados pois achavam que logo ela receberia alta. Eu não perdi tempo. Expliquei, resumidamente, que o resultado da ressonância havia ficado pronto e que infelizmente o câncer tinha voltado. Foi um choque desesperador. Eles ficaram mudos. Vi o abatimento na cara de cada um deles. Meu pai, com um olhar de dor muito grande, perdeu a voz, perdeu as forças. Mal conseguia conversar.
Minha mãe ficou muito arrasada, chorou, me abraçou. O que fazer agora? O que pensar? Ficamos todos completamente despedaçados.
Deixei meus pais com Ana Luiza e saí do quarto. Precisava chorar. Precisava tirar aquele aperto do meu peito. Fui até a outra ala do andar pediátrico, a ala B. Fiquei olhando pela janela. Olhei pro céu. Estava azul. E eu chorei pedindo que Deus tivesse compaixão da minha filha. Que a poupasse de sofrimento. Pedi que ele livrasse ela dessa doença. Me ajoelhei em frente a janela e implorei pra ter forças e seguir em frente em mais uma batalha.
Eu estava exausta. E saber que não existia mais nenhum tipo de tratamento disponível pra ela, me desesperava. Pela primeira vez, estive sem qualquer esperança. Minha filha, mais do que tudo, precisava de um milagre e eu me sentia fraca. Sem forças para pedir mais um milagre. Sem fé pra acreditar que ela ficaria boa.
Mais uma vez, tudo mudou bruscamente. Mais uma vez eu me sentia despreparada para essa mudança absurda na minha vida. Eu estava me sentindo derrotada, fracassada. Parecei ter escalado um poço muito fundo e quando finalmente conseguia me apoiar na beirada, alguém veio e me empurrou de volta.
Fui procurar a Cinthya, mãe da Beatriz. Grande amiga. Mãe que enfrentava a mesma batalha que eu enfrentava. Uma amiga que Deus me presenteou num momento de enorme tristeza.
Beatriz estava internada fazendo seus últimos ciclos de quimioterapia também. Eu precisava conversar com alguém que entendesse meu desespero. Na verdade eu queria pedir ajuda com meus pais. E ela se dava muito bem com eles. Poderia me ajudar, dando forças pra eles, levando-os pra fazer as refeições, conversando...
Contei pra Cinthya e o choro foi inevitável. Ela parecia não querer ouvir. Não querer acreditar. Choramos juntas e ela garantiu que estaria comigo. E me auxiliaria no que eu precisasse.
Quando estava voltando para o quarto, notei que os médicos estavam reunidos na sala de estar da Ala B. Eles sempre se reuniam lá para discutir os casos clínicos. Liguei para o Marcos e perguntei onde ele estava.
Ele estava entrando no hospital. Pedi que ele subisse para o quinto andar, na ala B que eu o aguardaria na área de elevadores.
Meu pai, ainda muito abalado, vagava pelos corredores e na hora que Marcos chegou, pedi que ele levasse as bagagens para o quarto de Ana Luiza, pois eu e ele conversaríamos com os médicos.
Enquanto aguardávamos os médicos saírem da sala onde estavam reunidos, Marcos e eu conversávamos. Estávamos completamente incrédulos. Marcos estava gelado, suado, apavorado. Eu chorava, sem saber direito o que pensar ou fazer.
Neste momento os médicos saem da sala e dão de cara conosco. Marcos disse que conseguiu desembarcar de Guarulhos e queria entender exatamente o que estava acontecendo.
Dra. Cecília, pacientemente, explicou que o câncer havia se manifestado nas menínges, ou seja, nas membranas que recobrem o cérebro. Que não existia uma massa sólida a ser retirada, mas que toda a membrana, estava comprometida, impregnada de células cancerígenas. Não existia possibilidade de cirurgia, nem radioterapia. E a única droga que Ana Luiza ainda não havia utilizado, não teria um efeito significativo na lesão. Mas eles estavam analisando se valeria a pena utilizar esse medicamento, mesmo que de forma paliativa.
Enquanto ela explicava, eu chorava desconsoladamente. Tentava segurar o choro desesperado, mas era impossível. Abraçada ao Marcos, meu corpo tremia inteiro a medida que a chefe da pediatria sentenciava. Os outros médicos, me olhavam com profunda tristeza. Dra Viviane e Dra. Fabiana derramavam lágrimas discretas. Eu podia sentir a dor que elas sentiam naquele momento. Dr. Nevi, o preferido de Ana Luiza, sequer abriu a boca. Não parecia ter condições para falar alguma coisa. Toda a equipe estava muito entristecida. E eu sentia uma verdade muito grande naqueles rostos. E eu agradeci a Deus, por ter tido a chance de lutar ao lado de pessoas tão maravilhosas.
Ana Luiza recomeçaria os exames de estadiamento. Era necessário saber se o câncer havia voltado a crescer em outras regiões para tentar viabilizar algum tipo de tratamento, mesmo que paliativo. Novas tomografias, novos exames. Não sentia que havíamos voltado a estaca zero. Sentia que havíamos voltado a estaca -1000 (menos mil)!
Caminhamos juntos até o quarto onde Ana Luiza estava. Ela estava acordada na hora que entramos e ficou extremamente feliz quando viu Marcos. Meu coração estava fragilizado demais e ter Marcos pra me amparar era muito importante. Graças a Deus ele não embarcou para Argentina. Enfrentar tudo isso sem ele por perto, teria sido ainda mais difícil.
Depois do almoço, Marcos nos deixou no quarto e conseguiu “fugir”. Ele precisava conversar com os médicos, mas sem a minha presença. Ele queria saber exatamente como seria a progressão da doença, o que aconteceria com Ana Luiza, quais os sintomas que deveríamos esperar. E ele não estava certo se eu conseguiria ouvir as respostas. Então foi, sozinho, conversar com Dr. Nevi.
Ele foi até o ambulatório de pediatria no térreo do hospital e perguntou. O “médico preferido”, Dr. Nevi, se despindo da condição de médico, explicou a situação como um grande amigo. E amigos são honestos.
Ele disse que Ana Luiza poderia evoluir com crises convulsivas e em uma destas crises, não voltar mais. Ou poderia falecer dormindo, como um passarinho, em virtude de uma parada cardiorrespiratória. Ele disse que a droga disponível, não teria efeito curativo, apenas paliativo, no intuito de prolongar a vida de Ana Luiza e melhorar a qualidade de vida por mais algumas semanas.
Dra. Cecília já havia nos explicado que uma recidiva nesta região era muito rara, que a região mais comum era o pulmão. E eles não sabiam explicar o motivo deste tipo de recaída. Algumas literaturas falavam, que crianças “super-tratadas” tinham recidivas em regiões incomuns e que este parecia ser o caso de Ana Luiza.
Marcos ouviu tudo atentamente. Perguntou sobre a necessidade dela ser intubada, caso parasse de respirar. E Dr. Nevi foi muito honesto. Qual seria o objetivo de intubar Ana Luiza? Sem tratamento, o câncer só se espalharia e a consumiria diariamente, prolongando um sofrimento, sem qualquer expectativa de melhorar. Mas a decisão era nossa, dos pais. Ele, como amigo, apenas sugeriu que, quando a hora de Ana Luiza chegasse, nós a deixássemos ir.
Pela primeira vez, o médico que havia se declarado “cético”, disse que Ana Luiza era uma criança muito especial, maravilhosa, madura, acima da média em todos os quesitos, e que pessoas assim, costumam ter missões breves na Terra.
Marcos agradeceu e saiu do consultório. Pela primeira vez, se viu realmente sem saída. Sempre havia havido uma chance - um hospital melhor quando ainda estávamos em Manaus, um protocolo de quimioterapia mais forte como o transplante autólogo ou uma radioterapia mais moderna, como a IMRT. Dessa vez, só o que poderíamos fazer é estar com ela e ampará-la. Ele chorou compulsivamente pelos corredores do hospital.
A tarde, os exames recomeçaram. Ana Luiza precisaria submeter-se a um mielograma, exame extremamente doloroso e desconfortável, o qual ela nunca havia feito antes.
O exame, basicamente, consistia em enfiar uma agulha enorme na coluna vertebral, para coletar o líquor, um líquido importante que recobre todo o sistema nervoso. A intenção era confirmar a presença de células malignas. Ainda nutríamos a esperança de que fosse alguma outra patologia, uma infecção viral ou alguma espécie de meningite. E o exame serviria para diagnosticar definitivamente a recidiva.
O médico que veio fazer o exame, experiente, cuidadoso, carinhoso, transmitiu muita segurança pra ela e pra gente. Posicionou Ana Luiza e pediu que um de nós, segurasse o tronco e a mantivesse na postura. Ela não quis que eu a segurasse. Queria apenas o Marcos. Assim que ele iniciou o procedimento, Ana Luiza gritava desesperadamente. Chorava muito, um choro desesperado de muita dor, e gritava dizendo: “Aiiii, papai!! Me ajuda!!! Aiiii, papaaiii!! Socorro!! Aaaiiiiiii” Eu não aguentava ouvir aquilo. Era enlouquecedor ouvi-la gritar daquele jeito. Nunca tinha visto Ana Luiza tão sentida, tão sofrida.
Após o exame, ela teria que ficar deitada por 4h, sem poder flexionar a coluna e por causa disso, somente no dia seguinte ela continuou os exames de estadiamento. Marcos passou a tarde deitado com ela. Ela recebeu diversas visitas. Os grandes amigos de sempre estavam lá. Os novos amigos da radioterapia também apareceram.
Os efeitos dos analgésicos potentes e do corticóide logo apareceram e Ana Luiza parecia mais disposta. Ela não desgrudava do “puí”. No dia seguinte, Marcos foi com ela em todos os exames: ressonância, tomografia e cintilografia. Mas em virtude da situação, eles estava permitindo que eu também a acompanhasse. Mas Ana Luiza só queria saber do “puí”. Só queria o colo dele.
Os exames foram feitos com a urgência que o caso exigia. Mesmo os médicos sabendo que a cura não viria, isso nunca seria motivo para a equipe do A.C Camargo deixasse de se dedicar a nenhum de seus pacientes.
Passado os exames, já de posse dos resultados, a Dr. Cecília ligou para o apartamento onde estávamos internados e pediu que fôssemos ate o consultório.
Explicou que o tumor tomou toda a região das meninges, não só a parte que recobre o cérebro como também a que recobre a medula espinhal. Os resultado do Mielograma apontou a presença de células anormais, portanto estava confirmada a recidiva do rabdomiossarcoma. Ela falou que a única droga disponível teria um efeito paliativo, ou seja, poderia segurar o avanço da doença, por outro lado, poderia debilitar muito a criança, pois Ana Luiza já tinha feito um transplante autólogo há pouco mais de 3 meses e que sua medula óssea ainda estava enfraquecida, podendo não responder bem a esta nova quimioterapia. Ela concluiu dizendo que a decisão pela quimioterapia era nossa.
Perguntei o que ela achava. Perguntei se ela achava sensato fazer a quimioterapia. A resposta foi simples: “Carol, Ana Luiza não é minha filha. Eu não posso dar opinião. Não fui eu que carreguei ela no ventre. Somente você pode decidir. E não existe certo e errado nessas horas. Tem familiares que preferem ir pra casa, aproveitar o tempo restante. Outros preferem ir até o fim. Mas essa decisão é sua. Somente você, que carregou Ana Luiza, pode decidir.”
Chorei muito. Um choro sentido. O momento mais triste da minha vida. E tudo que eu mais queria era colocar Ana Luiza nos braços, pegar um avião e voltar pra Manaus. Entrar em casa, permitir que ela entrasse em seu próprio quarto mais uma vez, jogar videogame com ela, tomar sorvete, deitar no chão da sala, comer pipoca, arrumar seu cabelo pro balé, levá-la pra ver o rio, dormir ao lado dela. Tudo que eu mais queria era a minha vida normal de antes. Chega de quimioterapia!!
Ao mesmo tempo, eu imaginava que, como Davi, esta pequena quimioterapia, seria capaz, miraculosamente, de atingir em cheio o grande Golias, que era esse câncer maldito. O fato é que eu não aguentava mais. Não queria mais decidir entre a cruz e a espada. Não aguentava mais vê-la sofrendo, vomitando, perdendo cabelo. Tudo que eu queria era que isso fosse um pesadelo e que eu acordasse em Manaus. Em minha casa. Com minha filha, saudável, me acordando dizendo: “Mãe, você já dormiu muito. Tá na hora de acordar!”, como ela sempre fazia nos finais de semana, quando vinha ao meu quarto e passando a mãozinha no meu rosto, me chamava pra ficar com ela.
A Dra. Cecília nos deu um tempo para pensar. Marcos e eu, cabisbaixos, fomos voltando para o quinto andar. Marcos foi enfático: “Vamos fazer a quimio, Carol. Daqui 5 semanas, 5 meses, 5 anos, estaremos tranquilos pois teremos em nossos corações, que fizemos tudo que tinha disponível em 2011 para tentar curar Ana Luiza. Eu sei que estamos todos cansados, ela também. Mas eu acho que devemos tentar.”
Pensei muito. Chorei muito. Conversei com nossos pais e nossos amigos próximos. E poucas horas depois decidimos fazer a quimioterapia. Voltei ao ambulatório de pediatria e confirmamos a nossa decisão. Dr. Nevi, concordando com as palavras da Dra. Cecília disse: “Nosso maior objetivo sempre será dar a maior qualidade de vida possível para Ana Luiza. Esta fase é muito difícil, muito dolorosa, mas apenas os familiares podem decidir. E não existe certo e errado. Se vocês decidissem voltar para Manaus e curtir os últimos de Ana Luiza em casa, teriam nosso apoio. Querendo ficar, estaremos ao lado de vocês. Conte conosco”.
No dia seguinte, Ana Luiza iniciaria o 1º dia de quimioterapia com a única e última droga disponível, o Topotecan. Ela já estava tomando um corticóide e um anticonvulsivante, para diminuir o edema, a dor e evitar crises convulsivas. Ela faria 2 ciclos de quimioterapia. Cada ciclo com duração de 3 dias. Após o 3º dia de quimioterapia, ela receberia alta do hospital e após 21 dias, faria mais um ciclo de 3 dias e repetiria os exames de imagem para sabermos os efeitos da medicação no tumor. Se tudo estivesse do mesmo jeito, a quimioterapia seria suspensa. Caso houvesse alguma redução prosseguiríamos com outros ciclos.
Avisei familiares, amigos e a família paterna/biológica de Ana Luiza. Agora nos restava torcer para que esta medicação fizesse algum efeito no tumor. Agradeci a Deus por mais um dia, pedi misericórdia pela vida da minha filha e me concentrei em minhas próprias orações. O que dependia das mãos dos homens continuava sendo feito. Agora, mais do que nunca, esperávamos por um milagre de Deus.
Faltavam apenas 20 dias para o fim da radioterapia do tórax. Somente 20 dias era o que faltava para o fim de um tratamento que deveria ter sido de pelo menos 2 anos, na melhor das hipóteses.
Exatamente no dia 20 de junho de 2011, após 09 meses do diagnóstico, Ana Luiza concluiria o último procedimento terapêutico e teria conseguido o feito de ter completado todo o tratamento muito antes do imaginado e com remissão completa da doença!
O tumor de 5cm na base do crânio, os diversos tumores espalhados pelos dois pulmões, as lesões cancerígenas em duas vértebras da coluna dorsal, o tumor no osso da perna e a infiltração do câncer na medula óssea. Tudo isso havia desaparecido em 9 meses. Milagres que testemunhei na companhia de dezenas, talvez centenas de pessoas que nos acompanharam.
No dia 20 de setembro de 2010 ela fez a ressonância que diagnosticou, precisamente, o rabdomiossarcoma e, 09 meses depois ela estaria livre dele. Difícil acreditar. Mas eu, Carolina, aos 28 anos, havia presenciado dezenas de milagres nestes últimos meses. O maior deles, sem dúvida, era o fim do tratamento, com Ana Luiza sem nenhuma sequela, sem nenhum rancor e sem nenhum trauma. Uma criança de 7 anos, que enfrentou um tratamento super pesado, doloroso e simplesmente continuou a criança de 7 anos que sempre foi.
Nestes nove meses minha filha nunca queixou-se dos procedimentos, por mais dolorosos que eles fossem. Nunca deixou de ser carinhosa e educada com todos os profissionais, que por força do dever, precisavam submetê-la aos mais terríveis procedimentos.
Cada coleta de sangue, cada injeção de contraste, cada ciclo de quimioterapia, cada sessão de radioterapia, cada internação... em todos os momentos, minha filha, meu orgulho, o amor da minha vida, só demonstrava o quanto ela era especial. Carinhosa com as enfermeiras, com as recepcionistas e com os médicos. Cumprimentava a todos: seguranças, zeladores, atendentes, professoras. Ela gostava do hospital, mesmo tendo passado os piores momentos de sua infância naquele lugar. Nada de mágoa, nada de traumas. Com muita tranquilidade, ela esticava o bracinho pra coletar sangue e apenas dizia para as técnicas de enfermagem: “Eu vou contar até três, tá? Aí você coloca a agulha... Um, dois, três e já!” Ela respirava fundo, segurava a respiração e assim que o sangue aparecia na seringa ela soltava o ar. “Ufa... Nem dói muito. Mas ainda bem que você é fera pra tirar sangue, né tia?” Dizia ela, com um sorriso no rosto.
Ana Luiza entrou e saiu do tratamento sendo a mesma criança de sempre. Com a diferença que tornou-se mais madura, aprendeu novas palavras, novos significados, conheceu novas pessoas. Aos 7 anos, ela mostrou uma maturidade espiritual que envergonha muita gente. A resignação, a confiança e certeza de que tudo ficaria bem.
Ao olhar pra minha pequenina, eu não via somente minha filha única, uma criança extremamente amada pela família e amigos. Eu enxergava uma mocinha vitoriosa, segura e confiante, cuja doença mais temida do mundo, não foi capaz de destruir, apenas de fortalecer.
Mas apesar de presenciar muitos milagres, nunca consegui me sentir completamente tranquila. Por alguns momentos, até pensei que eu não tinha fé. Que deveria apenas aceitar o milagre e pronto. Mas a verdade é que nunca deixei de me preocupar e de estar preparada para enfrentar o pior.
Me lembro que das centenas de e-mails e mensagens que recebi, em diversas delas, me enviavam algum trecho da bíblia. O que mais recebi, é um trecho bastante conhecido: “Tudo posso Naquele que me fortalece”, enviado sempre com o intuito de me encorajar e não perder a fé mesmo diante das piores circunstâncias. Outros enviavam esse mesmo trecho, interpretando que com Deus, podemos tudo, como se fôssemos, apenas pela fé, merecedores de bençãos sem fim.
Mas “tudo”, em minha opinião, significa, literalmente, TUDO. Eu poderia estar feliz com os milagres recebidos, mas eu também teria que estar preparada para enfrentar as dificuldades, caso elas insistissem em surgir. E independente da situação, minha fé deveria ser meu suporte.
Eu estava feliz? Sim. Mas de olhos bem abertos. Eu já estive plenamente feliz há 9 meses atrás e eu, melhor do que muita gente, sei o que é ver a felicidade ruir diante da gente. Eu sei muito bem o que significa colocar um filho lindo, saudável e inteligente para dormir num dia e, 6 dias depois, embarcar em uma UTI aérea, para buscar tratamento para um dos tipos de cânceres infantis mais agressivos que se tem notícia.
Enfim, eu não podia subestimar o “inimigo”. Eu deveria estar agradecida por tantos milagres, mas precisava estar atenta. Minha filha não estava se tratando de uma pneumonia. A doença era um câncer raro, agressivo e avançado, cujo tratamento ainda não está completamente estabelecido.
Apesar do fim do tratamento estar próximo, Ana Luiza só poderia voltar pra Manaus definitivamente, após os exames de imagem (ressonância magnética da coluna e do crânio, tomografia computadorizada do tórax e cintilografia óssea). E estes exames só poderiam ser feitos após 01 mês do último dia de tratamento, portanto, só voltaríamos para Manaus, definitivamente, em julho de 2011.
Com a autorização da médica, agendei o exames de Ana Luiza para o dia 18 de julho, véspera do aniversário dela. Assim, poderíamos comemorar o aniversário dela em São Paulo e logo depois dos resultados dos exames, finalmente voltaríamos pra casa.
Este período entre a última sessão de radioterapia e os exames finais, nós programávamos passar em Belo Horizonte, com os familiares do Marcos. Todos lá estavam muitos ansiosos, aguardando a chegada da pequena. Vovô Calmon, especialmente, aguardava a pequena no sítio em Lagoa Santa.
Há meses Ana Luiza falava em nadar na “piscininha” de água quente do sítio. Ela adorava a “piscininha”, um ofurô delicioso que o vovô mandou construir ao lado da “piscina grande”.
Em uma das consultas com a Dra. Cecília, perguntamos se ela poderia entrar na água depois do tratamento, pois o vovô tinha prometido trocar a água, lavar bem o ofurô e deixar de uso exclusivo para ela. Nestas condições, Dra. Cecília autorizou o banho de piscina e a pequena, gritando de felicidade, saiu correndo do consultório antes mesmo da consulta terminar, gritando: “Vovô, ela deixou!!! Vou poder entrar na piscininha!”
Enquanto eu explodia de alegria por ter chegado ao fim do tratamento, pelas vitórias alcançadas diante dessa doença terrível, minha pequena estava feliz porque poderia tomar banho de piscina. O quão profundo é isso? Ana Luiza, mais uma vez, nos mostrava o que era felicidade. Felicidade era um banho de piscina na casa do vovô.
Com o fim da radioterapia e o mês inteiro de espera até a realização dos exames de imagem, teríamos bastante tempo para passear com ela, organizar uma festinha linda pra comemorar o seu aniversário e “desmontar o acampamento” em São Paulo.
Meus pais chegaram de Boa Vista e meus sogros voltaram para Belo Horizonte. Estas 4 pessoas nunca me deixaram sozinhas. Sempre participaram de tudo e sempre se colocavam a disposição para tudo. Era maravilhoso poder contar com alguém, principalmente quando esse “alguém” se preocupava genuinamente conosco. Meus pais e meus sogros foram fundamentais nesse processo, assim como a dezena de amigos e familiares que estiveram ao meu lado.
Agendei todos os exames, deixei tudo acertado e assim, poderíamos aproveitar o mês de junho inteiro para organizar nossas coisas e enviá-las para Manaus, além é claro, de preparar uma linda festa de aniversário para Ana Luiza.
Todo ano, ela não tinha dúvidas sobre o tema que escolheria para o aniversário. Se houvesse dúvida, era entre um tema e outro. Mas até aquela data, Ana Luiza simplesmente não sabia o que escolher. Sugeri diversos temas, mas ela estava completamente desinteressada. Diariamente eu insistia pra saber o que ela gostaria, mas ela sempre se mostrava indiferente ou incerta sobre a festa. Ela estava feliz, mas não parecia empolgada com o aniversário.
Certo dia, Ana Luiza decidiu que o tema do seu aniversário seria um jardim encantado. Achei a ideia ótima. Ela sempre gostou de flores e estando em SP, poderíamos usar toda a criatividade para decorar uma festa linda.
Várias pessoas colocaram suas casas a disposição para comemorarmos o aniversário dela, mas por escolha da Ana Luiza, comemoraríamos na Pizzaria que ficava ao lado do apartamento onde estávamos hospedadas. Os donos, Arthur e Rosana, desde nossa chegada em SP, nos receberam com muito carinho e Ana Luiza, especialmente, conquistou o coração desse casal.
Decidido o tema e o local da festa, eu esperaria o tratamento terminar e começaria a organizar tudo. Não seria apenas um aniversário de 8 anos, mas uma comemoração ao sucesso do tratamento e uma linda despedida de agradecimento aos amigos que fizemos em SP, afinal já estaríamos autorizados a voltar pra Manaus.
Ana Luiza estava bem. Eventualmente queixava-se de dor de cabeça e acordava nauseada. Eu conversava com os médicos e todos eram unânimes em concordar que eram efeitos da radioterapia. Aqueles sintomas incomodavam a pequena, mas ela sempre tirava por menos: “Não é nada, mãe! É só um enjôo e você fica toda preocupada! Credo!” Ela realmente detestava drama. Não queria deixar ninguém preocupado e sempre minimizava tudo. Meu coração não estava tranquilo, mas ela realmente parecia tão bem.
Ana Luiza vinha se alimentando mal. Comendo pouco e sempre acordando muito enjoada. No dia 06 de junho, ela acordou e não conseguiu comer nada. Nem no café da manhã, nem no almoço. Tudo que ela tentava comer, vomitava.
Fomos para o hospital para mais uma sessão de radioterapia e alguns minutos antes de entrar na sala de radioterapia, ela teve um mal estar. Fiquei preocupada e liguei pro Marcos. Desde o dia em que ele voltou pra Manaus, vinha se preparando para uma viagem a trabalho para Argentina. Ele estava tranquilo quanto a viagem, pois Ana Luiza estava bem. Seria uma viagem curta e logo ele estaria de volta.
Assim que comentei sobre as náuseas que ela vinha tendo ele me tranquilizou e disse que acreditava que eram somente efeitos da radiação, exatamente como os médicos disseram. Ele aproveitou e disse que a viagem para Argentina estava confirmada, apesar do vulcão chileno que havia entrado em atividade e estava causando o cancelamento de alguns voos.
Meu coração estava apertado. Sabe-se lá porquê.
Na saída do hospital, encontrei com um casal e seu filho de 2 anos, vindos do interior do Amazonas para tratamento em São Paulo. O pequeno Alan, tinha uma suspeita de rabdomiossarcoma, o mesmo câncer de Ana Luiza e seus pais vivenciavam aquele momento inicial da confirmação do diagnóstico e início do tratamento. Estavam hospedados na Casa Hope e uma semana antes, meu pai e eu tínhamos ido até lá, levar algumas roupas de frio pra eles.
Um casal humilde, de coração enorme e bastante simpático. Os pais do Alan, vindos de uma cidade chamada Manacapuru, do interior do Amazonas, tiveram uma peregrinação completamente diferente da nossa.
Ana Luiza, Marcos e eu, estávamos na UTI do hospital A C Camargo, após 6 dias do primeiro sintoma de Ana Luiza. Estávamos hospedados em um apartamento confortável e a todo momento algum familiar vinha nos visitar. O Alan só conseguiu chegar aqui depois de meses de espera. Com muita dificuldade e com a ajuda de outras pessoas, eles conseguiram vaga em uma casa de apoio e contavam somente com uma ajuda de custo fornecida pelo governo, de pouco mais de 700 reais. Ajuda esta, dada aos cidadãos que precisavam sair de seu domicílio em busca de tratamento. Os parentes não tinham a menor condição de acompanhá-los ou ajudá-los como eu vinha sendo ajudada até então.
Isso era injusto. Os dois são crianças, amadas por seus pais e familiares e ambos tinham uma suspeita diagnóstica terrível. Diferente de Ana Luiza, Alan não tinha roupas de frio guardadas para quando viajasse para um lugar de temperatura mais baixa, mas como a minha filha, ele estava disposto a encarar o tratamento, sempre sorridente e esperto. Os pais do Alan também não estavam preparados para enfrentar os meses mais frios de São Paulo, mas assim como Marcos e eu, eles estavam apavorados diante da incerteza do diagnóstico e do medo de que algo ruim acontecesse ao filho único.
Apesar de sermos pessoas diferentes, vindas de famílias e lares diferentes, o câncer colocou todos nós, “no mesmo balaio”. Estávamos todos enfrentando o mesmo problema, com os mesmos medos e com as mesmas armas. A vitória ou a derrota, era algo incerto, mas a luta era o que nos igualava. Ou pelo menos deveria ser.
Quantas crianças, neste exato momento, estão tendo as chances que Ana Luiza e Alan tiveram? Quantas estão tendo as mesmas condições de tratamento que a Giulia, a Bia, o João Vitor ou o Rafael tiveram? Todos estes amazonenses que tive o privilégio de conhecer, tiveram acesso ao melhor tratamento possível em 2011. Mas muito longe de suas casas. Enfrentando a distância, as diferenças e as dificuldades inerentes a um tratamento longo, difícil, doloroso e, ainda por cima, distante de suas famílias e amigos.
Desde o início, assim que tomamos conhecimento da história deles através dos médicos do A C Camargo, tentamos ajudar de alguma forma. Passar pelo problema do câncer em si, já é terrível. Acumular problemas e dificuldades paralelos ao câncer, torna tudo ainda mais desesperador.
Ana Luiza e Alan brincavam na entrada do hospital enquanto eu conversava com os pais dele. Que família linda. Pena que nos conhecemos através da doença de nossos filhos. Um jovem casal, sorridente e confiante. E com muita fé e esperança de que o filho ficaria bem. Isso é o fundamental.
Ana Luiza e eu saímos do hospital, pegamos um táxi e fomos ao shopping. Fomos somente nós duas. Um passeio que sempre adorei. Somente eu e ela. Conversar, rir, abraçar, ensinar, aprender. E acima de tudo, ter essa filha-amiga sempre ao meu lado, era tão bom.
Ana Luiza não estava bem. Estava nauseada e a todo momento sentia vontade de vomitar. Mas mesmo assim ela quis passear. Jantamos exatamente o que ela queria: asinhas de frango crocantes, com batata e suco de laranja. Mal ela começou a comer, ficou nauseada e correu para o lavabo. Não deu tempo de chagar ao banheiro. Ela vomitou tudo. Os garçons olharam estranho pra gente. Em dúvidas, ficaram chateados com a sujeirada que fizemos no lavado. Mas eu não pude fazer melhor. “Pelo menos ela não sujou o salão do restaurante!” Pensei eu.
Voltamos para a mesa. Ana Luiza tirou o gorro e o cachecol que estava usando. Respirou fundo e com uma carinha de quem estava chateada consigo mesma, disse: “Posso pedir outro frango? Quero tentar comer de novo, mamãe!”
O garçom veio nos atender e vendo a carequinha dela, parece ter mudado na mesma hora a atitude conosco. Ficou sem graça, perguntou se estava tudo bem, se precisávamos de algo. Ana Luiza, com o seu jeito resolvido, apenas disse: “Sim, precisamos de algo: de outro frango crocante porque o primeiro eu vomitei todo. É por causa da radioterapia”
Eu não sei. Naquele exato momento me deu uma vontade de chorar. Um aperto no coração. Ela falava com tanta naturalidade e encarava tudo com tanta tranquilidade, que me deixava envergonhada. Quando o frango chegou e ela voltou a comer, eu tentei disfarçar minhas lágrimas. Ana Luiza era dura na queda. Se me visse chorando, me daria uma bronca. Então disfarcei.
Comecei a mexer na bolsa e enxuguei as lágrimas que insistiam em querer cair. Eu queria tanto que ela ficasse boa. Não aguentava mais vê-la sofrendo aqueles efeitos. Aquilo me destruía, apesar de toda a força que ela tinha. Eu só queria voltar pra casa e retomar nossa vida. Ela estava linda, com os cabelinhos voltando a nascer, os cílios e sobrancelhas bem fartos como sempre foram. E eu só queria que ela ficasse livre desse tormento que é o câncer e o tratamento disponível para tentar se livrar dele.
Ela terminou de comer, nada de vômitos ou indisposição. Fomos ao cinema e ela quis pipoca e suco de uva. Comeu mais um pouco e a comida ficou na barriga. Àquela altura, tudo que ela quisesse (e conseguisse) comer, era lucro.
Saímos tarde do cinema. Liguei para os meus pais avisando que já estávamos no táxi de volta pra casa. Liguei pro Marcos e ele se preparava para ir o aeroporto. Até então o voo estava confirmado e ele faria o embarque para Buenos Aires, com conexão em Guarulhos-SP.
Chegamos em casa e Ana Luiza estava bem. Contou sobre o filme para a vovó, disse pro vovô que comeu bem, fez as compressas com chá de camomila na região irradiada do tórax e passou a “baba de planta” (unguento/gel a base de Aloe Vera, que Ana Luiza detestava usar, porque segundo ela, parecia saliva).
Coloquei Ana Luiza para dormir e fiquei com o pensamento longe. Uma inquietação sem fim. Não conseguia dormir de jeito nenhum e tarde da noite, Marcos me liga pra dizer que não tinha embarcado, pois os voos haviam sido cancelados em virtude do vulcão no Chile. Ele, provavelmente, conseguiria embarcar no dia seguinte, mas me manteria informada.
Depois de algumas horas de insônia, algo incomum pois eu realmente dormia bem, finalmente caí no sono. Ana Luiza havia pedido pra dormir com minha mãe e eu acabei dormindo no escritório.
No dia seguinte todos nós acordamos e Ana Luiza continuava dormindo. Marcos ligou, disse que estava no trabalho, esperando uma definição da companhia aérea. Fui tomar banho e assim que saí do banheiro enrolada na toalha, Ana Luiza acordou gritando. Minha mãe correu pro quarto e Ana Luiza, sem conseguir falar direito, chorava muito, dizendo coisas incompreensíveis.
Quando cheguei no quarto, Ana Luiza estava no banheiro da suíte vomitando e gritando de dor. Minha mãe chorando desesperada, segurava e apoiava a cabeça dela com a mão.
Ana Luiza estava sentindo muita dor na cabeça. Gritava segurando a cabeça e dizia que teve um sonho terrível, que uma pessoa dava um tiro na cabeça dela e ela morria. Minha mãe soluçava e mal conseguia falar.
Tirei minha mãe do banheiro e pedi que ela fosse até a cozinha pegar os remédios da Ana Luiza e tentasse se acalmar. Segurei minha pequena no colo que, muito fraca, só chorava e dizia que estava com muita dor de cabeça e sono.
Coloquei ela no colo e a carreguei até o outro quarto, deitei-a na cama e dei os remédios de náusea e dor. Ela vomitou tudo de novo e, sonolenta, voltou a dormir. Eu me vesti apressadamente, liguei para o Marcos, contei o que aconteceu e ele disse pra irmos para o hospital.
Ana Luiza não acordava de jeito nenhum. Eu sentei ao lado dela e fiz a única coisa que podia: conversei com Deus.
Como toda oração que nós duas fazíamos juntas, primeiramente eu agradeci a Deus, agradeci pela chance de passar mais um dia ao lado dela, pelo alimento que nunca nos faltou e por sempre estarmos cercadas de pessoas que nos amavam. Depois de agradecer, pedi muito a Deus que Ele protegesse Ana Luiza, que a livrasse dessa doença e de qualquer dor. E que me desse forças pois eu estava com muito medo.
Ana Luiza continuava dormindo pesadamente e eu não queria acordá-la e acabar estimulando mais uma crise de vômitos e dor. Esperei alguns minutos e já não me aguentando de desespero, fomos para o hospital, meus pais, Ana Luiza e eu.
Ao chegar lá, carregando-a no colo, pois ela mal conseguia ficar em pé, fui direto para a emergência pediátrica. Meus pais vinham ao meu lado, carregando bolsas e documentos. O olhar de aflição dos dois me consumia. Eu nunca suportei vê-los angustiados. As duas pessoas que me colocaram no mundo, as duas pessoas que me amam incondicionalmente. Vê-los sofrer sempre me destruiu. E eu tinha que ser forte, para deixá-los fortes também.
A enfermeira me avistou de longe e, preocupada, me chamou para acomodar Ana Luiza num leito confortável na enfermaria. Ela gostava muito de Ana Luiza. Mas ela era sempre muito atenciosa, prestativa e carinhosa com todas as crianças e seus pais. Profissionais assim, fazem toda a diferença.
Aguardei a chegada dos médicos e rapidamente uma delas apareceu. A Dra. Fabiana, tão querida por Ana Luiza, foi quem nos atendeu naquela tarde. Contei o ocorrido, a fortíssima dor de cabeça, os muitos episódios de vômitos, a sonolência e a fraqueza. Ela solicitou exames de sangue, prescreveu medicamentos e sempre muito serena, nos tranquilizou dizendo que os sintomas eram compatíveis com a exposição à radiação (tratamento de radioterapia), mas que os exames de sangue poderiam apontar alguma outra causa, por exemplo, uma anemia ou perda de eletrólitos, justificados pelos intensos episódios de vômitos.
Enquanto aguardávamos, a Dra. Fabiana permanecia sempre por perto. Reexaminou Ana Luiza algumas vezes, verificou as pupilas dela, queria saber se ela estava mais “esperta”, mais acordada. Mas verdade seja dita: Ana Luiza só dormia. Os vômitos passaram, mas a sonolência só aumentava. E ela ficava com as mãos na cabeça o tempo todo. Sem dúvidas algo a incomodava demais. E esses sintomas “vômito/sonolência/dor de cabeça” me atormentavam desde setembro de 2010...
A Dra. Fabiana veio conversar conosco e disse que havia solicitado uma ressonância magnética do crânio. Ana Luiza, com a mão na testa e apenas com um olho aberto disse: “Vou ter que ficar internada?” A Dra. Fabiana apenas disse: “Você vai ficar internada somente por um dia, até sair o resultado da ressonância magnética. Amanhã cedinho, você vai ser a primeira paciente que vou dar alta. Pode ficar tranquila.”
Eu estava preocupada demais, mas a Dra. Fabiana disse que o exame era apenas para descartar algo mais sério, um exame padrão que deveria ser feito em virtude do quadro clínico que ela apresentava, mas que Ana Luiza estava bem e que com toda certeza no dia seguinte, de manhã, já receberia alta.
Eu não sei se ela estava falando a verdade ou se estava tentando amenizar meu desespero, mas a certeza é que ela conseguiu me acalmar um pouco. Só um pouco mesmo.
Meus pais estavam na lanchonete do hospital. Tinham ido buscar um café pra mim. Assim que chegaram expliquei que Ana Luiza ficaria internada para aguardar o resultado da ressonância que seria submetida no fim da tarde. Eu vi a preocupação nos olhos dos meus pais. E tentava, desesperadamente, passar a maior tranquilidade do mundo pra eles dois. Pedi que eles fossem em casa buscar uma roupa mais confortável pra Ana Luiza e nossos itens de higiene pessoal.
Quando eles finalmente saíram da enfermaria, liguei pro Marcos e falando baixinho expliquei que ela ficaria internada pra aguardar o resultado da ressonância que faríamos naquela tarde.
Segurando o choro no telefone, eu disse que estava muito apreensiva e Marcos mais uma vez tentava me tranquilizar. Ele não tinha dúvidas de que não era nada grave. Argumentou dizendo que ela ainda estava terminando o tratamento, que havia feito uma ressonância do crânio há pouco tempo por causa da radioterapia e não tinha aparecido nada. Portanto eu deveria tentar ficar tranquila, pois com certeza não era nada demais. E por fim completou: “Estou indo pro Aeroporto de novo hoje a noite e, se a companhia aérea liberar, embarcarei para Guarulhos de madrugada e devo ficar no aeroporto durante toda a manhã, aguardando o voo pra Buenos Aires. Assim que eu descer no aeroporto de SP amanhã, ligo meu celular e você vai me dando notícias.”
A enfermeira veio nos buscar para realizar a ressonância magnética. Ana Luiza foi sentadinha na cadeira de rodas, ainda muito sonolenta. Ela foi posicionada no tubo e como sempre, ficava imóvel, bem quietinha, esperando o exame terminar. Aplicaram o contraste intravenoso e concluíram o exame. Sem se queixar, ou se lamentar, Ana Luiza apenas submeteu-se ao exame.
Eu, sem poder fazer nada, completamente impotente, apenas pedia que Deus nos protegesse. Olhar para a cara dos médicos era algo que eu não tinha coragem há muito tempo. Não perguntei absolutamente nada. Apenas tirei ela da maca, a abracei bem forte e fui levando-a de volta a enfermaria da emergência no colo. Fui cheirando e abraçando ela bem forte. Eu estava sentindo um medo tão grande!
Voltamos para a enfermaria para aguardar a liberação do quarto no 5º andar. Ana Luiza ficou acordada e falou: “Poxa, nem vamos poder assistir o Disney on Ice, né mãe? Será que a moça vai ficar triste por que nós não vamos?” Algumas semanas antes, uma jovem mãe do Rio de Janeiro, a Rérica, que acompanhava o caso da Ana Luiza, nos enviou ingressos para assistir este espetáculo na pista de gelo e o evento era exatamente naquele dia. Eu disse que teríamos outras oportunidades e que com toda certeza, a moça entenderia.
Ela fechou os olhos, colocou a mão na testa e parecia voltar a dormir. Eu, sentada ao lado dela, apenas segurei nas suas perninhas, beijando-a e acariciando-a. Em minha cabeça, apenas pensava: “Minha filha... Que vontade que nada disso tivesse acontecido em nossas vidas... Esse medo, esse pesadelo sem fim! Que doença terrível!”
Assim que liberaram o quarto no 5º andar, as enfermeiras nos levaram até lá. Ana Luiza acordou e assim que chegou no quarto, quis assistir sua novela preferida.
Sempre tivemos TV por assinatura em casa e ela dificilmente assistia os canais abertos. Como no apartamento onde estávamos hospedados não havia TV por assinatura, Ana Luiza “descobriu” a TV Globo e suas novelas, a Record e especialmente o SBT. Diversas vezes tive que ir até a agência dos Correios próxima de casa, para comprar a Tele Sena e na hora que os números apareciam na televisão, ela pedia que todos fizessem silêncio e anotava os números religiosamente. Sabia toda a grade de programação do SBT, o nome dos programas, o horário que passava cada um deles.
Ela assistia com mais frequência o SBT, mas no fim da tarde, assistia a novela Cordel Encantado e todos que estivessem na sala, tinham que fazer total silêncio. Marcos nunca permitiu que ela assistisse novelas e em Manaus era mais fácil, afinal ela tinha outras opções. Mas em SP, sem poder sair muito de casa, era quase inevitável. Ana Luiza sabendo que o Marcos detestava que ela assistisse novela, pediu com muito carinho: “Deixa, Puí? Só essa novela? Por favor!!” Impossível dizer não, não é mesmo? E o Marcos autorizou, mas ela assistia sempre supervisionada.
Meus pais chegaram, assistimos à novela todos juntos. Ana Luiza conseguiu se alimentar, meus pais foram pra casa, angustiados, mas ela passou a noite bem.
No dia seguinte, bem cedo, às 6h, Marcos meu ligou. Tinha acabado de chegar no aeroporto de Guarulhos e aguardaria o embarque para Buenos Aires, por volta de 9h da manhã.
Pouco tempo depois Ana Luiza acordou queixando-se de dor na cabeça. Ela não conseguia sequer abrir os olhos. Chamei a enfermeira e expliquei que aguardávamos o resultado da ressonância e que eu gostaria de conversar com a Dra. Fabiana.
Ana Luiza foi medicada, mas não parecia fazer efeito... ela continuava sentindo dor. Aquilo me desesperava. Ela pediu pra assistir desenhos e eu liguei a televisão bem baixinho.
Meus pais ainda não tinham chegado. Ainda era cedo e eu queria muito que a Dra. Fabiana chegasse antes deles.
Nada dos médicos, nada da dor de cabeça diminuir, nada de eu conseguir disfarçar meu desespero. Ana Luiza assistia televisão e eu apenas segurava sua mãozinha. Marcos ligou. Queria saber o resultado da ressonância. E nada ainda. Ele disse que já estava na sala de embarque e que logo embarcaria e eu fui ficando cada vez mais angustiada.
Poucos minutos depois, uma das enfermeiras entra no quarto e diz que os médicos queriam conversar comigo lá fora e que ela ficaria com Ana Luiza.
Minhas pernas tremeram. Mal conseguia respirar. Beijei Ana Luiza e disse que já voltava. Ela me deu um beijinho.
Abri a porta do quarto e de longe avistei a Dra. Cecília e a Dra. Viviane, bem em frente ao posto de enfermagem. Elas conversavam, com o rosto apreensivo. E a cada passo que eu dava, eu me tremia ainda mais. Na mesma hora, me lembrei das palavras da Dra. Cecília: “Se o câncer voltar, não teremos mais nenhum tratamento”.
Eu tentava tirar esses pensamentos da minha cabeça. Assim que eu cheguei perto delas e antes mesmo que eu conseguisse cumprimentá-las, a Dra. Cecília me fulminou com suas palavras: “Carol, não tenho notícias boas. Infelizmente temos uma recidiva no sistema nervoso central, que está tomando toda a região meníngea. Fui conversar com o diretor da área de imagem e infelizmente, não temos dúvidas de que seja uma recidiva.”
Apenas coloquei as mãos na cabeça e disse: “Que merda, Doutora! Ô meu Deus, que desespero!!” E caí em um pranto tão desesperador, que mal conseguia enxergar as coisas direito. Me deu uma náusea tão forte, uma tontura, uma vontade de gritar...
As médicas apenas me olhavam, com um semblante de tristeza profunda! Recebi um abraço e tentava me recompor, mas a vontade que eu tinha era de me atirar no chão! “E agora, doutora? E o que a gente pode fazer? Existe alguma alternativa? Alguma radioterapia disponível ou alguma quimioterapia?”
A médica apenas disse que conversaria com a equipe, mas que infelizmente não existiam mais armas para combater a doença. Não era possível fazer cirurgia, e a região a ser irradiada por uma possível radioterapia, seria muito grande, pois o tumor tomava toda a área das membranas que recobriam o cérebro.
Enquanto ela falava, pedi um minuto para ligar para o Marcos, pois ele estava embarcando para a Argentina e eu precisava explicar o ocorrido.
Marcos, que estava indo para a fila de embarque, atendeu no primeiro toque e eu apenas disse: “O câncer voltou!” Sem saber explicar direito, pedi que a dra. Cecília conversasse com ele.
Enquanto eu enxugava as lágrimas e tentava me recompor do desespero, a médica explicava novamente para o Marcos, a situação de Ana Luiza.
Ela me passou o telefone e Marcos disse que não embarcaria mais. Que tentaria pegar a bagagem de volta e que tomaria um táxi até o hospital. E foi o que ele fez. Saiu desesperadamente da fila do embarque, procurou alguém da companhia aérea, explicou a situação, pegou a bagagem de volta e foi direto para o hospital. Ele disse que conversaríamos com os médicos com calma, pois ele ainda estava incrédulo e acreditava que tudo poderia ser um terrível engano.
Eu precisava voltar para o quarto. Precisava me recompor e encarar Ana Luiza. As médicas mudaram as medicações dela, deram analgésicos mais fortes e foram explícitas com a equipe de enfermagem: “Ana Luiza não pode sentir nenhuma dor!”
Voltei para o quarto e Ana Luiza continuava deitadinha. A enfermeira, como se tivesse sido treinada pra esses momentos, apenas me abraçou e sem dizer absolutamente nada, saiu do quarto. Ana Luiza me viu e esticou a mãozinha em minha direção, como ela sempre fazia. E eu segurei sua mão e caí no choro.
“Me perdoa, filha!” Era o que eu dizia... “Me desculpa por chorar! Mas eu preciso conversar com você e estou muito triste.”
Ana Luiza apenas disse: “O que foi, mamãe?” E eu expliquei que o câncer tinha voltado e que por isso eu estava chorando. Ela, com toda sua força, sem derramar uma lágrima sequer, enfaticamente disse: “Mãe, o câncer não voltou!”
Eu expliquei que tinha voltado sim, que as médicas haviam conversado comigo lá fora e que elas não iam inventar uma coisa dessas. Então ela olhou pra televisão, olhou de novo pra mim e com muita calma apenas disse: “Se eu fiquei boa uma vez, vou ficar boa de novo. Deus me ajudou uma vez e vai me ajudar de novo, mãe. Não precisa chorar.”
Quando ela falou isso, me senti um verme. Uma pessoa completamente sem fé, sem otimismo. Chorei mais ainda. E ela disse: “Mãe, eu que estou doente, deitada aqui nessa cama, não estou chorando! Por que você está chorando? Não precisa chorar.”
E ao escutar aquelas palavrinhas da minha filha, chorei ainda mais. E pela primeira vez, abri meu coração pra ela. Disse que eu estava chorando porque não aguentava mais essa doença. Não queria que minha filha passasse por todo o sofrimento de novo. Não aguentava mais os remédios, os exames, as consultas. Que tudo que eu mais queria ela vê-la curada de uma vez por todas. E que o fato da doença ter voltado, me deixava muito triste e por isso eu estava chorando.
Enquanto eu falava, Ana Luiza se emocionou e começou a chorar. E quando eu terminei de falar, ela esticou os bracinhos e me deu um abraço bem forte. Disse que me amava muito. E olhando pra mim ela disse: “Só vou deixar você chorar essa vez, viu? Chega de choro, mãe. Eu vou ficar boa.”
Escutando aquele ser de 7 anos de idade, que em poucas palavras me mostrou o que é ser forte, não tive outra opção: enxuguei as lágrimas, lavei o rosto, respirei fundo e fiquei esperando meus pais chegarem.
Eu tinha que ser forte para dar a notícia pra eles. Da mesma maneira que minha filha foi forte pra mim, eu teria que ser pra eles.
Meus pais chegaram, trazendo lanchinhos pra gente, animados pois achavam que logo ela receberia alta. Eu não perdi tempo. Expliquei, resumidamente, que o resultado da ressonância havia ficado pronto e que infelizmente o câncer tinha voltado. Foi um choque desesperador. Eles ficaram mudos. Vi o abatimento na cara de cada um deles. Meu pai, com um olhar de dor muito grande, perdeu a voz, perdeu as forças. Mal conseguia conversar.
Minha mãe ficou muito arrasada, chorou, me abraçou. O que fazer agora? O que pensar? Ficamos todos completamente despedaçados.
Deixei meus pais com Ana Luiza e saí do quarto. Precisava chorar. Precisava tirar aquele aperto do meu peito. Fui até a outra ala do andar pediátrico, a ala B. Fiquei olhando pela janela. Olhei pro céu. Estava azul. E eu chorei pedindo que Deus tivesse compaixão da minha filha. Que a poupasse de sofrimento. Pedi que ele livrasse ela dessa doença. Me ajoelhei em frente a janela e implorei pra ter forças e seguir em frente em mais uma batalha.
Eu estava exausta. E saber que não existia mais nenhum tipo de tratamento disponível pra ela, me desesperava. Pela primeira vez, estive sem qualquer esperança. Minha filha, mais do que tudo, precisava de um milagre e eu me sentia fraca. Sem forças para pedir mais um milagre. Sem fé pra acreditar que ela ficaria boa.
Mais uma vez, tudo mudou bruscamente. Mais uma vez eu me sentia despreparada para essa mudança absurda na minha vida. Eu estava me sentindo derrotada, fracassada. Parecei ter escalado um poço muito fundo e quando finalmente conseguia me apoiar na beirada, alguém veio e me empurrou de volta.
Fui procurar a Cinthya, mãe da Beatriz. Grande amiga. Mãe que enfrentava a mesma batalha que eu enfrentava. Uma amiga que Deus me presenteou num momento de enorme tristeza.
Beatriz estava internada fazendo seus últimos ciclos de quimioterapia também. Eu precisava conversar com alguém que entendesse meu desespero. Na verdade eu queria pedir ajuda com meus pais. E ela se dava muito bem com eles. Poderia me ajudar, dando forças pra eles, levando-os pra fazer as refeições, conversando...
Contei pra Cinthya e o choro foi inevitável. Ela parecia não querer ouvir. Não querer acreditar. Choramos juntas e ela garantiu que estaria comigo. E me auxiliaria no que eu precisasse.
Quando estava voltando para o quarto, notei que os médicos estavam reunidos na sala de estar da Ala B. Eles sempre se reuniam lá para discutir os casos clínicos. Liguei para o Marcos e perguntei onde ele estava.
Ele estava entrando no hospital. Pedi que ele subisse para o quinto andar, na ala B que eu o aguardaria na área de elevadores.
Meu pai, ainda muito abalado, vagava pelos corredores e na hora que Marcos chegou, pedi que ele levasse as bagagens para o quarto de Ana Luiza, pois eu e ele conversaríamos com os médicos.
Enquanto aguardávamos os médicos saírem da sala onde estavam reunidos, Marcos e eu conversávamos. Estávamos completamente incrédulos. Marcos estava gelado, suado, apavorado. Eu chorava, sem saber direito o que pensar ou fazer.
Neste momento os médicos saem da sala e dão de cara conosco. Marcos disse que conseguiu desembarcar de Guarulhos e queria entender exatamente o que estava acontecendo.
Dra. Cecília, pacientemente, explicou que o câncer havia se manifestado nas menínges, ou seja, nas membranas que recobrem o cérebro. Que não existia uma massa sólida a ser retirada, mas que toda a membrana, estava comprometida, impregnada de células cancerígenas. Não existia possibilidade de cirurgia, nem radioterapia. E a única droga que Ana Luiza ainda não havia utilizado, não teria um efeito significativo na lesão. Mas eles estavam analisando se valeria a pena utilizar esse medicamento, mesmo que de forma paliativa.
Enquanto ela explicava, eu chorava desconsoladamente. Tentava segurar o choro desesperado, mas era impossível. Abraçada ao Marcos, meu corpo tremia inteiro a medida que a chefe da pediatria sentenciava. Os outros médicos, me olhavam com profunda tristeza. Dra Viviane e Dra. Fabiana derramavam lágrimas discretas. Eu podia sentir a dor que elas sentiam naquele momento. Dr. Nevi, o preferido de Ana Luiza, sequer abriu a boca. Não parecia ter condições para falar alguma coisa. Toda a equipe estava muito entristecida. E eu sentia uma verdade muito grande naqueles rostos. E eu agradeci a Deus, por ter tido a chance de lutar ao lado de pessoas tão maravilhosas.
Ana Luiza recomeçaria os exames de estadiamento. Era necessário saber se o câncer havia voltado a crescer em outras regiões para tentar viabilizar algum tipo de tratamento, mesmo que paliativo. Novas tomografias, novos exames. Não sentia que havíamos voltado a estaca zero. Sentia que havíamos voltado a estaca -1000 (menos mil)!
Caminhamos juntos até o quarto onde Ana Luiza estava. Ela estava acordada na hora que entramos e ficou extremamente feliz quando viu Marcos. Meu coração estava fragilizado demais e ter Marcos pra me amparar era muito importante. Graças a Deus ele não embarcou para Argentina. Enfrentar tudo isso sem ele por perto, teria sido ainda mais difícil.
Depois do almoço, Marcos nos deixou no quarto e conseguiu “fugir”. Ele precisava conversar com os médicos, mas sem a minha presença. Ele queria saber exatamente como seria a progressão da doença, o que aconteceria com Ana Luiza, quais os sintomas que deveríamos esperar. E ele não estava certo se eu conseguiria ouvir as respostas. Então foi, sozinho, conversar com Dr. Nevi.
Ele foi até o ambulatório de pediatria no térreo do hospital e perguntou. O “médico preferido”, Dr. Nevi, se despindo da condição de médico, explicou a situação como um grande amigo. E amigos são honestos.
Ele disse que Ana Luiza poderia evoluir com crises convulsivas e em uma destas crises, não voltar mais. Ou poderia falecer dormindo, como um passarinho, em virtude de uma parada cardiorrespiratória. Ele disse que a droga disponível, não teria efeito curativo, apenas paliativo, no intuito de prolongar a vida de Ana Luiza e melhorar a qualidade de vida por mais algumas semanas.
Dra. Cecília já havia nos explicado que uma recidiva nesta região era muito rara, que a região mais comum era o pulmão. E eles não sabiam explicar o motivo deste tipo de recaída. Algumas literaturas falavam, que crianças “super-tratadas” tinham recidivas em regiões incomuns e que este parecia ser o caso de Ana Luiza.
Marcos ouviu tudo atentamente. Perguntou sobre a necessidade dela ser intubada, caso parasse de respirar. E Dr. Nevi foi muito honesto. Qual seria o objetivo de intubar Ana Luiza? Sem tratamento, o câncer só se espalharia e a consumiria diariamente, prolongando um sofrimento, sem qualquer expectativa de melhorar. Mas a decisão era nossa, dos pais. Ele, como amigo, apenas sugeriu que, quando a hora de Ana Luiza chegasse, nós a deixássemos ir.
Pela primeira vez, o médico que havia se declarado “cético”, disse que Ana Luiza era uma criança muito especial, maravilhosa, madura, acima da média em todos os quesitos, e que pessoas assim, costumam ter missões breves na Terra.
Marcos agradeceu e saiu do consultório. Pela primeira vez, se viu realmente sem saída. Sempre havia havido uma chance - um hospital melhor quando ainda estávamos em Manaus, um protocolo de quimioterapia mais forte como o transplante autólogo ou uma radioterapia mais moderna, como a IMRT. Dessa vez, só o que poderíamos fazer é estar com ela e ampará-la. Ele chorou compulsivamente pelos corredores do hospital.
A tarde, os exames recomeçaram. Ana Luiza precisaria submeter-se a um mielograma, exame extremamente doloroso e desconfortável, o qual ela nunca havia feito antes.
O exame, basicamente, consistia em enfiar uma agulha enorme na coluna vertebral, para coletar o líquor, um líquido importante que recobre todo o sistema nervoso. A intenção era confirmar a presença de células malignas. Ainda nutríamos a esperança de que fosse alguma outra patologia, uma infecção viral ou alguma espécie de meningite. E o exame serviria para diagnosticar definitivamente a recidiva.
O médico que veio fazer o exame, experiente, cuidadoso, carinhoso, transmitiu muita segurança pra ela e pra gente. Posicionou Ana Luiza e pediu que um de nós, segurasse o tronco e a mantivesse na postura. Ela não quis que eu a segurasse. Queria apenas o Marcos. Assim que ele iniciou o procedimento, Ana Luiza gritava desesperadamente. Chorava muito, um choro desesperado de muita dor, e gritava dizendo: “Aiiii, papai!! Me ajuda!!! Aiiii, papaaiii!! Socorro!! Aaaiiiiiii” Eu não aguentava ouvir aquilo. Era enlouquecedor ouvi-la gritar daquele jeito. Nunca tinha visto Ana Luiza tão sentida, tão sofrida.
Após o exame, ela teria que ficar deitada por 4h, sem poder flexionar a coluna e por causa disso, somente no dia seguinte ela continuou os exames de estadiamento. Marcos passou a tarde deitado com ela. Ela recebeu diversas visitas. Os grandes amigos de sempre estavam lá. Os novos amigos da radioterapia também apareceram.
Os efeitos dos analgésicos potentes e do corticóide logo apareceram e Ana Luiza parecia mais disposta. Ela não desgrudava do “puí”. No dia seguinte, Marcos foi com ela em todos os exames: ressonância, tomografia e cintilografia. Mas em virtude da situação, eles estava permitindo que eu também a acompanhasse. Mas Ana Luiza só queria saber do “puí”. Só queria o colo dele.
Os exames foram feitos com a urgência que o caso exigia. Mesmo os médicos sabendo que a cura não viria, isso nunca seria motivo para a equipe do A.C Camargo deixasse de se dedicar a nenhum de seus pacientes.
Passado os exames, já de posse dos resultados, a Dr. Cecília ligou para o apartamento onde estávamos internados e pediu que fôssemos ate o consultório.
Explicou que o tumor tomou toda a região das meninges, não só a parte que recobre o cérebro como também a que recobre a medula espinhal. Os resultado do Mielograma apontou a presença de células anormais, portanto estava confirmada a recidiva do rabdomiossarcoma. Ela falou que a única droga disponível teria um efeito paliativo, ou seja, poderia segurar o avanço da doença, por outro lado, poderia debilitar muito a criança, pois Ana Luiza já tinha feito um transplante autólogo há pouco mais de 3 meses e que sua medula óssea ainda estava enfraquecida, podendo não responder bem a esta nova quimioterapia. Ela concluiu dizendo que a decisão pela quimioterapia era nossa.
Perguntei o que ela achava. Perguntei se ela achava sensato fazer a quimioterapia. A resposta foi simples: “Carol, Ana Luiza não é minha filha. Eu não posso dar opinião. Não fui eu que carreguei ela no ventre. Somente você pode decidir. E não existe certo e errado nessas horas. Tem familiares que preferem ir pra casa, aproveitar o tempo restante. Outros preferem ir até o fim. Mas essa decisão é sua. Somente você, que carregou Ana Luiza, pode decidir.”
Chorei muito. Um choro sentido. O momento mais triste da minha vida. E tudo que eu mais queria era colocar Ana Luiza nos braços, pegar um avião e voltar pra Manaus. Entrar em casa, permitir que ela entrasse em seu próprio quarto mais uma vez, jogar videogame com ela, tomar sorvete, deitar no chão da sala, comer pipoca, arrumar seu cabelo pro balé, levá-la pra ver o rio, dormir ao lado dela. Tudo que eu mais queria era a minha vida normal de antes. Chega de quimioterapia!!
Ao mesmo tempo, eu imaginava que, como Davi, esta pequena quimioterapia, seria capaz, miraculosamente, de atingir em cheio o grande Golias, que era esse câncer maldito. O fato é que eu não aguentava mais. Não queria mais decidir entre a cruz e a espada. Não aguentava mais vê-la sofrendo, vomitando, perdendo cabelo. Tudo que eu queria era que isso fosse um pesadelo e que eu acordasse em Manaus. Em minha casa. Com minha filha, saudável, me acordando dizendo: “Mãe, você já dormiu muito. Tá na hora de acordar!”, como ela sempre fazia nos finais de semana, quando vinha ao meu quarto e passando a mãozinha no meu rosto, me chamava pra ficar com ela.
A Dra. Cecília nos deu um tempo para pensar. Marcos e eu, cabisbaixos, fomos voltando para o quinto andar. Marcos foi enfático: “Vamos fazer a quimio, Carol. Daqui 5 semanas, 5 meses, 5 anos, estaremos tranquilos pois teremos em nossos corações, que fizemos tudo que tinha disponível em 2011 para tentar curar Ana Luiza. Eu sei que estamos todos cansados, ela também. Mas eu acho que devemos tentar.”
Pensei muito. Chorei muito. Conversei com nossos pais e nossos amigos próximos. E poucas horas depois decidimos fazer a quimioterapia. Voltei ao ambulatório de pediatria e confirmamos a nossa decisão. Dr. Nevi, concordando com as palavras da Dra. Cecília disse: “Nosso maior objetivo sempre será dar a maior qualidade de vida possível para Ana Luiza. Esta fase é muito difícil, muito dolorosa, mas apenas os familiares podem decidir. E não existe certo e errado. Se vocês decidissem voltar para Manaus e curtir os últimos de Ana Luiza em casa, teriam nosso apoio. Querendo ficar, estaremos ao lado de vocês. Conte conosco”.
No dia seguinte, Ana Luiza iniciaria o 1º dia de quimioterapia com a única e última droga disponível, o Topotecan. Ela já estava tomando um corticóide e um anticonvulsivante, para diminuir o edema, a dor e evitar crises convulsivas. Ela faria 2 ciclos de quimioterapia. Cada ciclo com duração de 3 dias. Após o 3º dia de quimioterapia, ela receberia alta do hospital e após 21 dias, faria mais um ciclo de 3 dias e repetiria os exames de imagem para sabermos os efeitos da medicação no tumor. Se tudo estivesse do mesmo jeito, a quimioterapia seria suspensa. Caso houvesse alguma redução prosseguiríamos com outros ciclos.
Avisei familiares, amigos e a família paterna/biológica de Ana Luiza. Agora nos restava torcer para que esta medicação fizesse algum efeito no tumor. Agradeci a Deus por mais um dia, pedi misericórdia pela vida da minha filha e me concentrei em minhas próprias orações. O que dependia das mãos dos homens continuava sendo feito. Agora, mais do que nunca, esperávamos por um milagre de Deus.